quarta-feira, 9 de julho de 2008

Saltos a 17°C

Queria ser artista.

Daqueles naturais, de alma e com raça. O pensamento desce pros meus olhos, eu sinto o cheiro das palavras ditas. A arte quase me enforca e sufoca, mas continua seguindo pela minha clavícula, massageia o meu ombro, eriça os pêlos do meu braço direito (quem dera fosse o esquerdo!) pontua os meus dedos. A ponta do dedo que segura o lápis me faz delirar na imensidão do dicionário imaginário: aquele que está dentro de mim e que paira no ar de vez em quando.

Mas um caminho tão longo, olhos, boca, pescoço, ombro, braço, mão, faz com que o que eu penso não seja o mesmo que invento. E muita coisa se perde. No tempo, no vento e me descontento com o resto. Não me satisfaço. Não me agrada e não me compensa o café quente, doce, escuro como a cor do que se perdeu.

E o que se perde é um pedaço de espírito. Não me dou bem com o papel. Ele segura o lápis. Retarda ainda mais o caminho da arte, que carrega em si as palavras inaudíveis. Não me dou bem também com as pessoas. Não sei analisar movimento, pensamento, sentimento. MENTA!

Queria ser artista.

De todas as formas, jeitos, fatores: de todos os mundos, do frio, do quente, da morna agonia de estar vivo. Porque "para morrer basta estar vivo", mesmo! Morrer deve ser fácil, muitas vezes doloroso, ver a morte é raro e poderia ser chamado de privilégio. Mas privilégio mesmo é sentir a vida como ela é. E sofrer, porque ela não é bonita. Para mim, talvez seja, mas para os meus iguais, irmãos, almas gêmeas de mesma cor interior, não. Queria ser a dor. Assim, me mataria sem hesitar. Queria ser a morte. E todo mundo morreria como quisesse. Sem ânsia, sem medo, sem deserto.

Queria ser a palavra. E saberia sempre o que dizer. Queria ser a folha e, sozinha, me desenharia círculos de carinho, flores de perfume cítrico, cheiro de pão-de-queijo fresco. Queria ser a pele, delicada de dama, ou rasgada da seca, ou dura do trabalho. Queria ser a fome que atacou aqueles meninos cansados que certa vez tomaram o mesmo ônibus que eu. Mas, acima de tudo, queria ser o canto. Para fazer as notas notarem as bocas dos que querem gritar. E poderia ser tudo o que eu quisesse, se o mundo não tivesse se tornado um imenso destruidor de fantasias.

As minhas preocupações não são vãs. Vivemos num mundo doente, doença contagiosa. E é por isso que eu queria ser artista. Porque a arte é a cura. A arte é o início da beleza, a arte é o peito aberto, as unhas sujas, a plena liderança da vida. E sendo artista eu seria tudo. Sendo tudo, talvez pudesse fazer com que todos também fossem tudo. Todos fariam parte do meu mundo só, que deixaria de ser só se tivesse todo mundo. Cada mundo sozinho seria um mundo inteiro de histórias. Um fazendo companhia ao outro, o ímpar não existiria. Não existiria sobra ou falta.

Mas querer ser tudo é querer demais.

Quero ser só artista... quero ser só a sua solidão... porque aí você teria a mim. E eu teria a você. Ainda bem que tenho a sua dor, sinto a sua lágrima quente. Ainda bem que lhe vejo espernear, mesmo na sombra da sua divina comédia. Ainda bem que lhe vejo, porque a artista é você... Que faz a sua linha da vida ser o que você é. E eu sou como você. A nossa arte é fazer da solidão um livro inteiro. O nosso tudo é um abraço rápido, mas verdadeiro. O nosso mundo é cada um no seu canto, pensando, pensando, pensando no cheiro...

E de que vale ser coerente nas palavras?

A nossa arte é o nosso amor.

Os nossos problemas são gigantes, porque nossa vida não pode ser resumida num papel de valor calculável. A nossa carne é viva de força e gana.

Queria ser artista.

Para apagar a matrix que corrói o peito silenciosamente...

Queria ser artista.

Para ser capaz de não me conter.

Queria ser artista.

Para poder lhe mostrar em gestos, palavras, todas as formas de expressão que o nosso mundo é só nosso. A nossa aliança ultrapassa os estigmas, os sinais, a troposfera. E para dizer que esse tudo, tão enrolado em tantas palavras, se resume na sua grandeza sem medida. O tudo é seu. Você me dá. O tudo é nosso. E ninguém tasca. Queria ser artista...

Para estender a mão e dizer que nada disso faz sentido porque sou artista!

Tenho no coração a ausência do preconceito.

Tenho nas pernas a vontade de correr e continuar com pressa.

Tenho nos olhos o brilho...

E na garganta, a voz potente de um cantor lírico no auge da sua força.

Queria ser artista e só artista. O mundo seria todo meu, se fosse...





Amanda Miranda

Um comentário:

Claudia Bittencourt disse...

Perfeito esse texto.
Você é uma artista, e nosso mundo é mais completo com você. =]
Minha cantora, escritora e amiga fodona xD

Te amo :*