terça-feira, 23 de abril de 2013

Manhã de mexericas azedas


De costas pra ele ela revelava uma tatuagem desbotada na escápula esquerda. Alguma coisa sobre música, ninguém nunca sabia. Era confundida com carrinho de supermercado, carinha triste e vírgula. Às vezes, quando a blusa escondia a maior parte da tatuagem, via-se uma bolinha que podia ser facilmente confundida com uma pinta gigante. Por falar em pintas, ela tinha 178. Se é que não aumentaram de dois anos pra cá. Tinha contado uma a uma com alguma ajuda. 178 era um número bem atraente. Gostava das pintinhas do ombro, as que mais gostam de se multiplicar pela ação do sol. Acho que ainda sonhava.

Não gostava de esquecer as coisas, mas esquecia-as indiscriminadamente. Preferia se revoltar e continuar com as unhas escuras desgastadas a esquecer coisas lindas. Por sorte, as feias também fugiam a memória. Tudo fugia dela. Sem querer, quase querendo. Ele a abraçou e era aquilo que não queria esquecer. E de alguma forma aquela sensação duraria para sempre, mesmo que a falta de memória precoce viesse ocupar os espaços já preenchidos por lembranças tão... fortes. E simples. E inesquecíveis esquecidas, sempre.

Mesmo inesquecíveis, quase todas as lembranças iam embora. Não tinham ordem certa para ir. Só iam. Iam as intensas, as lentas, as lânguidas e as magrelas. A ordem cronológica mal importava. O café da manhã de ontem foi embora junto com as águas que caíram de alguma nuvem nessa cidade que chove, chove, chove. Depois para, para, para. Até não poder mais secar.

De tanto pedir disciplina, ela veio irrefutável depois de um sofrimento aí. Fazer tudo certo desta vez, ela pensava, colocando sempre a vírgula no lugar errado. E não sofrer. Aproveitar a sensibilidade do pedaço de um poema, o método claro de um artigo lido pela metade, a arte de quebrar tudo por todos os lados. E os parágrafos perdidos em palavras, palavras, palavras.

De repente, por causa da dor, aprendeu a estudar, trabalhar, chegar na hora, sorrir, desestressar, organizar o tempo, dar um beijo na mãe, ligar para o pai, curtir a irmã ali embaixo, tomar sorvete ou açaí na hora errada. Por causa da dor, ela voltou pra casa e percebeu a que parte do mundo pertencer sem duvidar. Era um campo de força estar no quarto apertado cheio de sapatos jogados pelo chão. E numa tarde gostosa de vento gelado e sol de rachar, três toques suaves na porta e a pergunta que nunca calaria:

- Quer um copo d'água?

Obrigada.
Ela ainda sonhava, só que de verdade com direito a beliscão. Tudo era cheio e quente, mesmo o ventinho batendo na janela quebrada em tempos tão dispersos, tempo canino, desvairado, animal. Tinha chocolate em cima da mesa. Suíço. Pode? Fotos memoráveis, a felicidade de outros que a deixava tão mas tão mas tão feliz quanto a felicidade dela mesma poder voar. Ainda sonhava de olhos abertos vivendo, sentindo os cheiros e lembrando. 

As memórias ficariam desta vez? Aos poucos ainda se perdem, sem eira ou beira, na imensidão do conhecimento que tende a expandir cada vez mais todos os dias. Propositalmente, sem querer esquecer.

Não estava onde queria, mas onde deveria estar. E isso era absolutamente redentor.
Antes ela dizia não às ofertas de copos de água inacabáveis. Hoje bebe a água mais doce e refrescante de um jardim de tijolos, pimenta e pisos bicolores rachadinhos do tempo e do bom uso. Pés de barro, xixi de cachorro, água com sabão em pó, joelhos em escorrega, e algumas outras borradas histórias com marcas de pneu de carro e sorrisos ao abrir a porta e dar de cara com um lar.

Pleno. Plena.