quarta-feira, 9 de julho de 2008

A Casa Gelada

10 de junho de 2007

Um dia frio.

Mas está quente aqui dentro...

Quente nos olhos, quente nas mãos. A saliva caminha, quente, pelos caminhos da boca. O vento gélido uiva e briga com as janelas do meu quarto. A casa gelada, o chão gelado, as paredes quietas. Mas está quente aqui dentro. Quente no útero, nas vísceras, no fígado, nas orelhas. Quente no coração. Na porta cinza do andar debaixo, depois de descer as escadas de madeira, leio a frase num símbolo vermelho dos escoteiros: "Aqui vive um Sênior". Ainda não fazia idéia do que era um Sênior. Com tão pouca idade ainda não tinha nem a ruim noção de que acordava descabelada. Até gostava... era a minha marca dentro da casa gelada. Eu era gordinha, branquinha, dos cabelos castanho-escuro, inquieta, inquieta, inquieta e quente, para sempre quente.

Era o quarto dos meus irmãos inteiros; nunca ousei chamá-los de meio-irmãos. Eles eram grandes de espírito, altos, criativos, inteligentes, inteiros, meus e irmãos. Nunca meio, nunca medíocres. Sempre inteiros de sangue, de alma, de bondade. A parede branca rabiscada organizadamente (e como seria um rabisco organizado? Não sei, mas gostava), cheia de desenhos, cores, letras fortes de personalidade.

O dia continua frio... Continuo andando pela casa, encontro minha mãe e minha outra mãe, sentadas, como sempre sorridentes e com os olhos cheios de cumplicidade. As duas, lindas, heroínas da minha vida... Com algumas partes do corpo frias, mas com a essência quente. Vontade quente, suspiro quente, crença quente.

O meu apetite, ah... Era o mais quente de todos. Quente ansioso e bem trabalhado. Comida nunca faltou, muito pelo contrário. A mesa sempre farta de tudo o que é mais gostoso e melhor para o crescimento, para a saúde.

Eu era a última criança da casa. A última que ainda tinha vontade de brincar, de correr. Tinha espírito de garoto; as minhas bonecas se rasgavam, nunca soube como cuidá-las. Gostava dos carrinhos de controle remoto, dos desenhos animados de ação. E amava, acima de tudo, a minha família. Amo, acima de tudo, a minha família.

O dia continuava frio...

Eu sentia um vazio, que durante toda a minha vida me acompanhou. Mas era um vazio cheio, como o meu frio quente, como a minha dor latente, como o meu sonhar vago e certo. E aquele frio contínuo percorreu todo o dia sem me deixar sair para brincar. Vontade de me enfiar debaixo das cobertas ou das "asas" da minha mãe, como aquele dia em que a família inteira se aninhou no quarto dos meus pais. Eles ainda viviam juntos e felizes. Mas era um dia frio também.

E todos os meus dias são frios. Exceto aqueles em que tudo vai bem.

Raros.

Vantajosos.

Quentes...



Amanda Miranda

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