sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Mãe.

Acho que menti inocente para um namorado ou dois quando disse que deles vinha o melhor carinho do mundo. Acho que menti para um ou outro sem saber que mentia descaradamente quando disse ser a pessoa mais importante para mim.

Ela tem as unhas pontudas e redondinhas, ao mesmo tempo. Mãos macias e rosadas, com mais pintinhas do que ela gostaria, mas que eu sempre apreciei com carinho. As minhas poucas que herdei são mais numerosas que em seres humanos normais mas ralas em relação às dela. São constelações nos ombros, minha mãe vestida de estrelas e planetas, como seu coração fabricante de astros. Uma galáxia vitoriosa, um universo guerreiro em infinita expansão.

Ela caminha devagar com as pernas torneadas e tem um sorriso tão sincero quanto a palavra. O salto pela escada anuncia a chegada de uma mãe de asas abertas, podadas diariamente pelos filhos arredios, libertos demais. Para isso os criou, livres, independentes, reais, maciços, de princípios enraizados inquestionáveis, de gestos reduzidos, desconfiados.

As pupilas assimétricas por trás dos oclões, embaixo de algumas ruguinhas sorridentes, cercada por cabelos prateados e castanhos. O colorido natural de uma vida aproveitada com dignidade e garra. A doçura da voz contrasta a riqueza de sua personalidade, um vulcão em erupção, fogo crepitante, um corpo sem parar para respirar. Um corpo bem cuidado zeloso por uma alma inquieta. Um cérebro em constante ansiedade, pilhando em mais, mais.

Mãe. Tenho duas, já disse. Mas esta é aquela que abriu mão dos sonhos pelos sonhos dos filhos e construiu junto com eles a vitória, as conquistas, as realizações, a responsabilidade. Do lado, reparando pequenos erros, corrigindo falhas, amansando as feras que a vida solta nas jaulas da infância. Sentada ao lado da minha cama, sem contar histórias, desmentindo o fim do mundo, aquecendo-me em fortes cobertas gordinhas. Embaixo de suas asas, eu era o pássaro mais lindo. O pássaro mais protegido. O pássaro mais distante, o de mais sede. O pássaro mais cantante.

Minha mãe, um misto de agressividade e doçura. Cérebro, emoção. Ciência, arte. Uma mulher tão firme e tão vasta e tão... minha? Mãe do mundo sem sair de casa, mãe do acerto e dos meus primeiros passos. Mãe das minhas primeiras palavras e das minhas primeiras notas. Minha mãe, meu norte, meu dó. Aquela que me deu o dom de sentir, de lutar, de ser uma fortaleza de pés descalços. Aquela que me deu a humildade, o nariz e o espirro escandaloso. Aquela que me largou no rio caudaloso de emoções e me salvou dos furacões da insanidade, saudade e descrença. A mãe que me guardou e me expôs aos males do mundo para aprender e que me livrou do receios sem fundamento, que alimentou o medo de voar ou de colocar o pé no chão. E que o medo andasse ao lado, para identificar e torná-lo meu companheiro na hora da cautela. E que o mundo é meu, não tenho dúvidas. Ela não me impôs o limite em quilômetros e sim em bondade, respeito, educação. A mesma mãe que acorda todas as noites quando a porta do quarto é escancarada com violência pela caçula de força desmedida e delicadeza abaixo de zero, com uma piadinha esganiçada em voz de sonolentas mães.

Uma mãe que lê pensamentos, que vai até onde os filhos deixam com muita compreensão e opinião, sempre querendo ir além para proteger mais, mesmo sabendo que o caminho é deixar. Deixar ir, deixar voar, deixar ser, deixar errar, levantar, cair e acertar. Aceita quietinha debruçada em seus estudos que seus frutos voem com sucesso para além de seus arco-íris particulares. O potinho de ouro são os sonhos, sonhados juntos, moldados com gentileza, cuidado e sabedoria. E mesmo nos momentos violentos por parte de um ou outro, criador ou criatura, de todos os lados emana o calor que une, ainda, e que faz experimentar momentos raros de conversas sem finalidade regadas à risadas de amor, daqueles transparentes sem fundo, cavernas inexploradas de pureza e esperança.

De todas as coisas do mundo o egoísmo criacionista demanda mães que durem para sempre. Para aqueles momentos em que o caminho é claro e para aqueles que não se vê um palmo a frente. Para aqueles momentos em que o piso é íngreme ou para quando as planícies vazarem pelo horizonte sem acabar. Mães que durem para sempre, para que haja luz aos pesadelos diários e gelo para os galos na cabeça. Mães que durem para sempre, para filhos crescidos, para filhos nem tanto, para filhos nascidos, filhos no céu. Mães que durem para sempre para mostrar ao mundo a verdadeira arte de amar sem condições. Mães que durem para sempre para apertar, abraçar e ter certeza do rumo a seguir. Mães que durem enquanto durar a vida dos filhotes para sempre filhos. Mães que durem para sempre para abrir a porta de casa e dizer seja bem-vindo de volta. Mães que façam tremer os monstros e a vaidade. Mães que durem enquanto durarem os estoques de filhos, filhas, órfãos. Mães para amamentarem e permanecerem quando o mundo desistiu. Mães que durem para sempre, porque mães são os únicos seres capazes de tudo, carregados pela força de unirem-se a outro corpo em plenitude e carregar no ventre o futuro da humanidade.

Precisa-se de mães que durem o tempo que for necessário para mudar o mundo, bruto, e fazer crescer jardins nos concretos. Porque no fim somos todos pequenas crianças em busca do colo reconfortante e da alegria de ter para sempre a segurança do infinito.

Minha mãe, um infinito em mim, para mim.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Get it.

Você não entendeu quando eu disse não. Não respeitou quando eu disse não quero e fingiu não ouvir quando disse que não vou. Você deixou palavras passarem de um ouvido para o outro e depois deixou ainda que elas saíssem passeando com o vento como apenas os seus sonhos fossem a realidade irrefutável do que eu sentia. Você não quis saber. Pegou pra você o que era meu de direito, a escolha, e eu disse não e você ouviu um sim. Eu disse não quero, você percebeu eu te amo. Eu disse não vou, você entendeu vamos para sempre juntos de mãos dadas. Não consegui ser clara?

Eu sou uma alma livre, solitária, agridoce e feliz. Isso você não entendeu. Solitária e feliz. Sou intensa e forte, agressiva até a morte, com o foco de poder na simplicidade humilde de simplesmente passar sem querer incomodar. Eu quero estar assim. E a parte de que isso não vai mudar, você ainda pisoteou. E não quero mesmo, falo pouco quando de passagem, sorrio muito quando decido ficar mais um pouco, minha vida não deve pesar para ninguém e se para você não pesa mesmo quando eu decido pesar, isso não significa que eu vou te amar. Eu não te amo, meu bem e pare de se iludir. São os seus sonhos e os seus quereres, muito distintos dos meus. Eu não quero ao meu lado um corpo para amaciar. Eu não quero e a quantidade de eus indica a quem realmente interessa. Eu não me interesso e você, ah, não se incomode em me conquistar. Deve se incomodar em seguir em frente e partir para outras alvoradas, porque você já me perdeu antes de me ter. Se é que se pode ter alguém. Não, não pode. Pelo menos não a mim.

Não se incomode em me acompanhar até o carro ou me vigiar a noite inteira de cara fechada, rasgada. Não se incomode em me levar até em casa, não se incomode em gostar de mim todo dia um pouco mais. Não se incomode em gastar suas energias comigo ou seus sonhos com casos perdidos de infinitos nãos. Meu não é para sempre e se os seus sonhos também são, meu bem, não queria estar na sua pele.

Aprendi a seguir. Aprende também. Melhor pra você e melhor para mim. Sou indomável, incolor e nada, ninguém, pode me controlar quando eu quiser que meu mundo vá até o fim. Eu sou expansão e não caibo em gaiolas de palha ou ouro. Eu sou asas abertas em pleno vôo, quando você ainda pensa em me transformar em pipas, papagaios mimados ou pombos de jardim. Meu bem.... eu não sou assim.

E tudo o que você conseguiu me provar até agora, querendo o contrário, foi que não me entende, não me conhece e sonha mais do que se importa em realizar. Eu não deixei você entrar na minha vida. Você invadiu sem perguntar, e eu não gostei, mas não gostei mesmo. Quis saber demais, procurar demais, falar demais. Pode sair agora. Os meus sonhos são incompatíveis com os seus. Minha índole incompatível com a sua. Meu amor... não é pra você. E se não posso ser mais clara ou mais ignorada, mais ignorante ou mais rude ou mais metida ou mais sincera, eu escrevo e deixo o mundo saber que o escolhido não é você. Não escolhi ninguém ainda, mas não é você. Um doloroso caso de aceitação. Simples e doída. A vida é assim, mesmo que não tão simples às vezes. Mas a recusa dói, por isso fantasiamos. Acorda, pelo seu bem. Acorda, abre a cortina do quarto e deixa o sol cegar seus olhos. O seu destino... não sou eu.

E se me importo em dizer não, é óbvia ainda me importo com você. A sinceridade pura muitas vezes é tida como um sinal de educação falha, mas é a porta que te guia ao próximo passo. Te prender nesse vazio seria mais cruel que tentar te provar a existência do Papai Noel e seus duendes. Ah, meu bem, segue em frente.

Com carinho, com pesar e de todo o meu coração, te apresento a realidade.
Basta acreditar.

sábado, 9 de novembro de 2013

De pernas pra cima

São pouquíssimos os momentos em que posso colocar as pernas pra cima e não pensar. Não pensar em você e no seu jeito de andar, não pensar no que fazer e que roupa colocar. Às vezes, depois de ter tirado toda a minha roupa sem malícia, fico deitada olhando as estrelas artificiais do meu teto, esperando nada, vendo pensamentos passarem como pessoas na rua na hora do rush. Muitas pessoas, muitos pensamentos. Deixando o corpo respirar o ar limpo de casa limpa. Com o seu cheiro nos lençóis, no meu nariz e na minha fraca memória.

Sinto sua falta. Hoje, sem complicação. Tanto que olho para a mesma janela todos os dias ao passar de carro por ali. Algumas coisas mudaram e meu mundo tem sido tão irreal. Parece que não existo quando a luz se apaga e os vagalumes se afastam escurinhos. Um bichinho de luz pousou no meu ombro de moletom branco. Esse moletom é meu, que besteira a minha de devolver o seu. Não só o moletom, mas a sua presença e o seu amor. Só não queria que me odiasse, mas não me odiar nunca vai ser suficiente. O que eu gostaria que você sentisse joguei fora por querer outra coisa irreal ainda.

Ah, meu bem... como eu queria que você estivesse aqui e me atrapalhasse e anotasse as besteiras que eu digo entre o sono e a vida e respirasse no meu rosto um sonho qualquer.

Volta aqui.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Não cansei ainda.

Meu exauri, mas não terminei ainda.

Desculpa se tremi no banco do carro, se no fim não quis ajuda e se me afundar é tão fácil quanto sorrir. Me acostumei a ser assim, um sorriso por aqui, uma careta bem medonha ali e máscaras tão profundas que até de mim escondo as sombrias posses da minha alma.

Ainda acho que no fundo, amo. Mas o medo é tão aterrador, abrasador, que ultrapassa todas as coisas lindas, me queima todos os jardins. Um passado tão recheado, um presente tão vazio, uma flor seca e futuro nenhum.

Desculpa se tremi na sua frente e te pedi perdão. Talvez devesse ter ficado calada e orgulhosa sozinha com meu sentimento na mão. Mas como tudo que sou, tenho que extinguir, espalhar, abrir, estampar. E de tantos erros não sou eu a reclamar do seu sono e da tamanha falta dele. Não sou eu a te acordar e te empurrar da cama e espreguiçar em cima do seu cabelo perdido nos travesseiros. E talvez nunca mais seja, a vida é assim. Eu simplesmente perco e sei que a culpa é toda minha todas as vezes.

Desculpa se bebi demais. Se perdi a beira da estrada, se caí no asfalto sujo. Desculpa se minha melancolia foi pesada demais e se no final eu quis pular sem pensar da janela do décimo andar. Desculpa se meu chuveiro derrama quente as minhas lágrimas pelo ralo velho e enferrujado. Desculpa se sou amor do dia do amor, a espera de um amor que já foi amor um dia e que hoje. Meu hoje não existe. Ainda não dormi, então a madruga ainda é ontem.

Desculpa se sou a rainha do drama mais inadequado do bairro. E se a fumaça do meu cigarro acabou com as minhas chances de sucesso. E se o meu fundo de garantia não posso retirar, e se não consigo decorar a placa do seu carro e se minha memória é tão ruim quanto cortar laranja com faca de mesa. Desculpa por ter ido embora e por ter voltado. De novo. De novo. De novo.

Eu só sei ir, até que uma mão me prenda. E não se prenda em lágrimas e não tenha medo quando eu disser eu vou. Não, você não vai. Você fica, porque ao meu lado é o seu lugar. Machista? Intimista? Nazista demais? Quando alguém quer ficar, talvez basta um parafuso para grudar, um prego pra prender, um grampo pra juntar. E quando são só lágrimas e porquês e o que você vai fazer o caminho se abre e eu vou. Quando na verdade tudo o que eu queria era ficar. E se no meio do caminho encontro uma flor, logo ela seca e se vai também, porque o amor, o amor, o amor, ele se faz com um tempo e que tempo que me dá raiva, que não me deixa plantar, que só me faz ir, transportar, aparater, emudecer. Secar.

Tantos anos com isso petrificado, congelado, aparecendo vez em quando em superfícies turvas, sempre na hora errada, porque talvez nunca vá haver hora certa, porque dizem que amor não tem dessas coisas. Mas amor, assim, tão complicado, tem amor de tudo quanto é jeito, eu não sei o que é amor.

E a resposta aparece. O dia nasce, as pessoas andam, acordam, se movem. Eu também, mas o essencial continua dormindo, confortável na cama de coberta roxa, esperando se emaranhar nos cabelos sempre certos, sempre errados.


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Offline.


Primeiro desligaram-se os sentimentos. A rede estava completamente desconfigurada, não se achava em lugar nenhum a senha do cerne. O coração batia tão acelerado quanto um coração que vai parar a qualquer minuto. Sem chave, sem segredo, sem cor. Não se via ódio, rancor, tampouco amor e vontades de gargalhos. Era um sombrio escuro que se deixava mostrar em lágrimas esquecidas aqui e ali.

Vontade de voltar e se afogar no mar gelado de um sul que congelou a alma antes de qualquer coisa. Não foi culpa da cidade, tampouco das pessoas. A culpa era dela por se deixar afogar. Caldos e caldos de água salgada confundindo-se com gotas de suor e malgrado. O mundo não parava para que ela adormecesse. O mundo não pararia se ela morresse.


Em seguida os dedos pararam de viver também. Não os sentia. Dedos livres, leves, apáticos, pálidos, quase roxos de um frio que vinha dentro para fora, que emanava pela água e congelava as algas passarelantes. Dedos da mão entre os cabelos curtos desesperados. Dedos do pé roçando uma areia molhada no fundo do mar. Só os peixes, peixinhos, peixões que beliscando a pele branca de marfim sentiam o gosto da morte se enfurecer, se enriquecer e finalmente tomar conta de todo o resto.

De formigamento, os membros passaram a fantasmagóricos. A respiração finalmente cedeu, e respirou sal molhado com tubarões imaginários. Doía como tubarões, presente como tubarões, mas tubarões não gostam de frio, portanto, imaginários. Não tão imaginários como as baleias que arcavam com os sentimentos dela. Aqueles primeiros que se desligaram.

Os olhos ficaram por último offline.
Era o fim da linda, da linha, do marítimo sonho de correr a cavalo pelas beiradas do mar.

Casacos

Começou com um casaco preto, mas a Déda colocou pra lavar e encheu de bolinha branca. Depois o casaco era vermelho e era só meu. Depois virou um casaco azul cheio de histórias pra contar. De repente surge um casaco roxo, tão lindo... mas fiz merda e o casaco sumiu e depois surgiu um casaco cinza que me assustou tamanho conforto e depois um casaco preto de novo que eu não usei.

Desisti de me agasalhar.

Não se morre de frio no Brasil.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Setembro chove.

O momento mais feliz é quando a primeira gota cai no parabrisa do carro, na janela do quarto ou na flor mais alta da varanda, depois de olhar pelo vazio da rua pelando de um deserto de prédios e casas poeirentas. Era o rosto parando de crepitar e os pés alcançando as poças de lama. A água que caía era o fim de uma temporada de visitas frequentes ao hospital, era a felicidade prateada iluminada pelos faróis dos carros passando.

O primeiro trovão me arrebatou e abriu o maior sorriso da semana. Não precisava de ninguém ali. Eram os carros passando, iluminando as pistas de vento e luzes apagadas dos postes. Eram as árvores se rendendo ao frescor da primeira chuva da primavera. A espera pela chuva tinha acabado. E dos carros do lado de fora dava pra enxergar todas as pessoas sorrindo também, passando sem cuidado pelo asfalto escorregadio. A primeiro chuva, uma bênção e uma maldição, para os que acreditam em mitos mais do que eu.

Pra mim era apenas o fim do meu calor. A chuva pareceu molhar meus olhos por trás das retinas, alcançando um cérebro trespassado de provas vitais e responsabilidade descabida. Os últimos dias tinham sido ruins e quentes e eu não reclamo porque amo ter o calor e poder escolher o melhor modo de me refrescar, mas tinham sido ruins por outros fatores e o calor fazia suar minhas ideias.

Quando o primeiro pingo de chuva caiu no parabrisa do carro, na janela do quarto ou na flor mais alta da varanda, pude ver o mundo se abrir pra mim em resposta às minhas preces para Odin, Oxum, Jesus Cristo e Zeus. Todas as divindades compartilham as minhas ideias e passeiam pelas minhas dúvidas e até o primeiro pingo, tinham fechado todos os caminhos. Pareciam eles também não querer deixar o calor vazar. Quando o primeiro pingo de chuva caiu em mim, as respostas vieram e eu sabia para onde ir e o que abraçar.

Um caminho, uma oportunidade, um amor. Os caminhos se abrem à primeira gota que era pura doação de uma natureza cansada de secar. Secava tudo, sem descrição detalhada. Secava tudo. Até pingar onde eu não podia esperar. Hoje meu coração choveu com o céu.

Saí do carro depois de percorrer um caminho apressada de chuva na cara, amando estar entre a ventania e os trovões. Corri sem trancar a porta. Antes de chegar onde não chovia, parei. Olhei para trás, tranquei as portas e sem tirar o sorriso do rosto, corri para a portaria de costume, pulando a primeira poça de lama. Depois de me sacudir a roupa azul, olhei para a frente e vi o que tinha que abraçar, enfim. Larguei as coisas no chão, correndo e pulei em cima do abraço mais branquelo vestido também de azul, com o cheiro inconfundível de chuva invadindo minhas narinas, enfeitado de pequenas folhinhas caídas da árvore.

A primeira gota, a primeira chuva, a primeira resposta.
Descobri, finalmente, que na minha rua chove em setembro.
E sei que é lindo demais molhar.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sobre nãoamor e suas achanças


É que me apavora dizer "eu te amo". Isso não foi de sempre. Enchia a boca pra falar eu te amo, gritando pela bicicleta no parque em público, subindo nas paradas de ônibus ou no silêncio de um quarto morno a meia luz.

Mas hoje eu te amo baixinho. Tão quieto que falta morrer. É só hoje, eu te amo que talvez amanhã e que passe pelas olheiras do tempo e de mim. Desculpa, se eu não conseguir amar depois, daqui a um minuto a uma semana. Os sonhos são tão mutáveis e a vida é tão estranha. Não faço por mal.

Acordo todos os dias com um sorriso e vou sorrir para o resto dos meus dias, mas ainda é tão pequeno, desculpa, sofrer é tão maior. E só me resta o hoje e agora eu te amo que não cabe, mas ainda baixinho. Não tenho força pra gritar. Te amo raro, te amo que me foge fácil no esquecer na leitura e no trabalho.

Às vezes tenho a nítida sensação de que vivo pra esquecer. Não sei de onde vem mais nada. Tudo dentro virou uma bola de confusa massa sentimental abstrata, perdida sem definição e sem os preconceitos da humanidade. Eu te amo só até daqui a pouco. Depois, eu não sei mais.

Eu definho vivendo intensamente os momentos efêmeros como meus sopros. Cada nota emitida é uma nota que morre, mas que fica nas memórias e nos sonhos e no coração, ainda tenho um. Duvida, eu sei, ainda tenho um coração. Mas acho que ele morreu também.

Como largar uma vida de coisas lindas. Me perguntei isso tantas vezes que chegou a doer em lugares que não sabia existir. E dói como ter que abrir os olhos para as frias manhãs. Voar alto também é morrer.

Cada passo me guia pra morte, meu amor, entenda. Sou uma casca, cheia de amores brutos, rasgados, mortos. E a sua vida, vale muito mais do que um cadáver que anda e sorri. Ela mal começou e a minha já acabou tantas vezes que perdi as contas. Às vezes acho que minha vida se foi de vez com os oitenta comprimidos daquele dia de suor e lágrimas. Cada cápsula uma parte de mim. Cada pílula, o inferno em forma de sarar. Foi uma história triste e passou, mas eu não passei. Eu fiquei e morri sete vezes na mesa de hospital. Morrer é como ficar para sempre no escuro, sem ninguém para estender a mão. Ressuscitar é acordar sozinho para seguir sozinho até o fim.

Não tenho medo de ser feliz. Só acho que não preciso ser feliz. Acho que não nasci pra ser feliz. Tudo passou a ser tão valoroso e ao mesmo tempo tão insignificante que só consigo passar pelas horas olhando o sol, sentindo o vento no rosto. Aproveitando os passos e morrendo. Eu só sei morrer. 

Me perdoa? Não posso voltar, e não quero que você volte. Eu preciso que você viva. Eu PRECISO que você viva e siga e não morra comigo. Eu preciso que você me deixe no passado, onde eu fiquei, presa nas minhas alças de mala e na cama dura, amarrada às rodas de um carro sem direção, enterrada na areia dos meus piores pesadelos. Meus dias não tem mais cor e não vejo como as cores possam voltar.

Não há nada que você possa fazer. Me deixe ficar no seu passado, num feliz passado. Me ajuda a te deixar ir, para um futuro mais lindo, mais claro, mais vivo. Eu sou terra e terror, um fim oco, cinzento. 

Agora só me resta fazer o melhor. Deixar uma vida organizada e sem pendências pra quando a minha hora chegar e ela não demora. Gasto muita vida pra sorrir a todo tempo. E dói tanto que aqueles sopros se vão tão rápido. Morro todo dia, ainda. Ainda e pra sempre.

Não me segue, por favor. Minhas trilhas não levam a lugar nenhum e meu sorriso não ilumina mais os caminhos. Eu sou o lado errado da bifurcação, uma estrada sem volta, sem apego, sem choro, sem vela. 

Os opostos são a mesma coisa. Não me atraio a nada. Não tenho polo negativo ou positivo.
E não tenho mais medo, porque sei que essa rua não tem saída. Não tô perdida, não sou renegada e não sou triste. Só não sou. E não ser, talvez seja a pior das humanidades.

Te peço pra deixar. Eu e meus abismos, minhas correntes, minhas cegueiras e dramas e maçaricos.
Eu e eu e eu e eu. Pra te proteger. Só posso te proteger de mim. E isso é tudo. Vai?

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

domingo, 26 de maio de 2013

Sobre céu e sangue.

Parafraseando Beatles, while my heart gently bleeds, subo o Eixo Monumental com o céu frio, gelado de chuva de granizo passada. Um outono, quase inverno, mas nem tanto.

Não é fácil ser o que é preciso ser para quem devemos ser, mas não é impossível. Às vezes o rombo no coração sangra sozinho, mas por causas muito mais nobres que sarar ou não se ferir. É preciso saber acima de tudo que vale a pena se segurar, por quem vale a pena ter, no sentido de estar do lado, e não possuir.

E tem valido a pena. Por passar por tanto mal, meu deus é a bondade que existe em mim. Meus deuses de benevolência, gozo e saudade. A vontade de tornar o dia de alguém melhor ou subir a escada pensando que o quarto precisa de uma varrida e varrer, logo em seguida, sem esperar que alguém o fizesse. É delicioso fazer o prato de alguém e receber um beijinho em troca. Porque trocas são, sim, necessárias. E trocar é o segredo da felicidade. A troca certa, no momento certo, com a pessoa certa. É redentor.

E sobre humanidade, talvez devêssemos ser mais humanos sim. E mais animais. E entenderíamos a verdade de um amor eterno, a importância de um sorriso, a grandeza de ver o sol se pôr sangrar e a dureza de abrir mão do que preciso for. É preciso sofrer, e porque o sofrimento é tão certo é que é preciso parar de inventar dor e começar a inventar outras coisas. Como um pulo no muro certo para o quintal certo. Como um andar ritmado, em busca de um sonho com música, letra e vontade.

Às vezes arde. E todo mundo sabe disso. Deve arder, tem que arder. E passar. Pega a laranja, parte em quatro e aproveita o suco doce, azedo, quem sabe amargo. Aproveita o bagaço, a morte do néctar protegido. E se for escuridão do outro lado. Deixa que seja. Às vezes a própria luz em demasia pode cegar.

Subi sangrando, com o pôr do sol frio se tornando cada vez mais forte, contrastante e belo à medida em que morria devagar. E morrer, sabendo que o renascimento logo vem, pode não ser tão ruim assim.

Subi tentando descer e chegar.

Ainda tem um colo quente e um abraço apertado pra me receber.
Ainda tem uma linda noite para ser.
Ainda dá tempo.
Ainda dá tempo...

terça-feira, 23 de abril de 2013

Manhã de mexericas azedas


De costas pra ele ela revelava uma tatuagem desbotada na escápula esquerda. Alguma coisa sobre música, ninguém nunca sabia. Era confundida com carrinho de supermercado, carinha triste e vírgula. Às vezes, quando a blusa escondia a maior parte da tatuagem, via-se uma bolinha que podia ser facilmente confundida com uma pinta gigante. Por falar em pintas, ela tinha 178. Se é que não aumentaram de dois anos pra cá. Tinha contado uma a uma com alguma ajuda. 178 era um número bem atraente. Gostava das pintinhas do ombro, as que mais gostam de se multiplicar pela ação do sol. Acho que ainda sonhava.

Não gostava de esquecer as coisas, mas esquecia-as indiscriminadamente. Preferia se revoltar e continuar com as unhas escuras desgastadas a esquecer coisas lindas. Por sorte, as feias também fugiam a memória. Tudo fugia dela. Sem querer, quase querendo. Ele a abraçou e era aquilo que não queria esquecer. E de alguma forma aquela sensação duraria para sempre, mesmo que a falta de memória precoce viesse ocupar os espaços já preenchidos por lembranças tão... fortes. E simples. E inesquecíveis esquecidas, sempre.

Mesmo inesquecíveis, quase todas as lembranças iam embora. Não tinham ordem certa para ir. Só iam. Iam as intensas, as lentas, as lânguidas e as magrelas. A ordem cronológica mal importava. O café da manhã de ontem foi embora junto com as águas que caíram de alguma nuvem nessa cidade que chove, chove, chove. Depois para, para, para. Até não poder mais secar.

De tanto pedir disciplina, ela veio irrefutável depois de um sofrimento aí. Fazer tudo certo desta vez, ela pensava, colocando sempre a vírgula no lugar errado. E não sofrer. Aproveitar a sensibilidade do pedaço de um poema, o método claro de um artigo lido pela metade, a arte de quebrar tudo por todos os lados. E os parágrafos perdidos em palavras, palavras, palavras.

De repente, por causa da dor, aprendeu a estudar, trabalhar, chegar na hora, sorrir, desestressar, organizar o tempo, dar um beijo na mãe, ligar para o pai, curtir a irmã ali embaixo, tomar sorvete ou açaí na hora errada. Por causa da dor, ela voltou pra casa e percebeu a que parte do mundo pertencer sem duvidar. Era um campo de força estar no quarto apertado cheio de sapatos jogados pelo chão. E numa tarde gostosa de vento gelado e sol de rachar, três toques suaves na porta e a pergunta que nunca calaria:

- Quer um copo d'água?

Obrigada.
Ela ainda sonhava, só que de verdade com direito a beliscão. Tudo era cheio e quente, mesmo o ventinho batendo na janela quebrada em tempos tão dispersos, tempo canino, desvairado, animal. Tinha chocolate em cima da mesa. Suíço. Pode? Fotos memoráveis, a felicidade de outros que a deixava tão mas tão mas tão feliz quanto a felicidade dela mesma poder voar. Ainda sonhava de olhos abertos vivendo, sentindo os cheiros e lembrando. 

As memórias ficariam desta vez? Aos poucos ainda se perdem, sem eira ou beira, na imensidão do conhecimento que tende a expandir cada vez mais todos os dias. Propositalmente, sem querer esquecer.

Não estava onde queria, mas onde deveria estar. E isso era absolutamente redentor.
Antes ela dizia não às ofertas de copos de água inacabáveis. Hoje bebe a água mais doce e refrescante de um jardim de tijolos, pimenta e pisos bicolores rachadinhos do tempo e do bom uso. Pés de barro, xixi de cachorro, água com sabão em pó, joelhos em escorrega, e algumas outras borradas histórias com marcas de pneu de carro e sorrisos ao abrir a porta e dar de cara com um lar.

Pleno. Plena.