terça-feira, 1 de julho de 2014

Miscelânea.

Ela apagou os faróis. Da cidade, planície, conseguiu ver as constelações brilhando acima do veículo em movimento. Não fazia frio. Não tanto quanto antes, na cidade fantasma, úmida e invernenta o ano inteiro, onde fora morar há alguns meses atrás. Era um frio redentor e apaixonado, este que via através do parabrisas e pela janela do carro, enquanto colocava a cabeça e sentia o vento morrer nos olhos. Olhar as estrelas tinha sido o melhor momento do dia. Até agora.

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Depois de assistir à peça do professor, cuja atuação impecável deixou a plateia de olhos aguados, aliás, que dia aguado e amplo, saiu para pagar o estacionamento no andar debaixo. Esperou a fila e despediu ansiosa dos colegas da faculdade. Queria ir embora logo e ver o namorado. Por um milagre a chuva não a tinha deixado virar o leão como de costume virava na umidade. Odiava a umidade quase mais que a maldade e falta de humanidade dos homens. Gostava do seco, crocante, firme. SOL. Gostava mesmo de se rasgar. Nos prantos, na pele, nos palcos. Estava em busca do firme, ansiosa para ver o amor de cabelos longos e andar lento. O que mais gostava nele era o andar. Calmo, paciente. Era no andado que ele escondia todas as violências, que apareciam no momento tão adequado que faltava fôlego. Gostava quando ele tentava brigar e quando começava a se enfurecer, devagar, de olhar pesado. Ela cortava com carinho. Só sabia ter carinho por ele mesmo nos momentos mais críticos. Aliás, nunca tiveram momentos muito críticos. Eram sempre suaves, mesmo quando doíam. Quando gritava louca, rasgava cortinas e soltava sapatos, o amor era esquecido e amores de verdade nunca são esquecidos. Nem nos momentos de mais raiva. Por isso nunca ficava com raiva. Ela nunca conseguia. Ela nunca quebrava as portas em cima dele. Ela nunca soltaria uma palavra ríspida. Até que ele provasse que era necessário. Mas não seria. Que amor, só, não bastava e que era preciso soltar os cachorros. Ela nunca, nunca, queria soltar os dela. Porque não eram apenas cachorros. Eram a morte num espectro decidido, afinado e sem volta.

Pagou o estacionamento. Entrou no carro limpo, que custou o ombro direito, ligou o rádio mudo e seguiu ouvindo o chiado distante da falta de sinal. Era quase o fim do mundo ali. Nada mais havia além de um lago sujo e uma mata cerrado de árvores tortas. O fim do mundo, na verdade, não era. Era majestoso o cerrado feio, ela achava lindo. Demoníaco, mas lindo.

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Era bom parar na saída do estacionamento do shopping e ver as pessoas dentro dos carros colocarem as mãos para a fora, quando deveriam colocar os cartões já pagos. Era fácil tentar adivinhar se homem ou mulher, idosos ou jovens. Pelos anéis nos dedos, pelo reflexo no retrovisor, pela distância entre o carro e a máquina de engolir cartões pagos de estacionamento. Aquela, que fala e assusta gente como ela. Ela era simples, tão simples. Calos nos pés, uma vida de botinas, cavalos, matagais e rios. Gostava do nome que tinha...

Era bom imaginar o que essas pessoas faziam. Se tinham carros chiques, anéis nos dedos ou blusa de manga comprida. Sempre se perguntava como. E eram vidas necessárias, aquelas em volta. Gente que a obrigava a parar na saída do estacionamento. Mãos brancas ou negras, peles manchadas, com pingos de chuva. A mulher do último carro estava em um enorme. Tinha mãos brancas e um lindo anel dourado com uma pedra na ponta. Parecia sorrir, aquele de satisfação. Era bom.  Gostava de imaginar que todas tinham presentes para outras pessoas. Bombons, pedacinhos de torta comidos, um café sem terminar. Aquelas coisas pequenas que todo o dinheiro do mundo não compra. A comida do outro, quando mordida, sempre tem um gosto melhor. Dividir, desse jeito, é mais gostoso. O dia, chuvoso, dava para imaginar. Sair de casa, do frio úmido, tão raro, na cidade planície. Era uma cidade jovem. Como ela, que começava a amadurecer, rápido, mas com uma calma lúcida. Era bom, finalmente, se livrar de monstros do passado, picos de humor e revoltas desnecessárias.

Gostava de ler coisas chatas na cama enquanto o dia passava devagar sob as cobertas. Mal via o sol baixar e sumir. Gostava tanto do sol, tanto quanto gostava das margens dos rios e das matas ciliares. Seu cílios eram fartos, e ela adorava encher de rímel e mostrar ao mundo que estava de olhos bem abertos, atentos, ligados e cheios, cheios, de ternura. Ela via pouco o mal e agradecia aos deuses que não conhecia e aos esquecidos pelo fato de estar viva. Gostava de amar como gostava de sorvete. E gostava de ser amada como gostava de amar. A felicidade está na troca. E trocar, puxa, sempre foi tão bom. Ela dizia.

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- Não, branquela. Tinha que ser com o pé direito! Junto comigo!
- Ai, preto. Desculpa!
Todos os lugares em que iam, tinham que colocar, juntos o pé direito. A primeira vez que pisou na praia de Copacabana, pisou desconcertada fora do ritmo do namorado, um barbudo, príncipe de picareta na mão,  como ele gostava de dizer. E com o pé esquerdo, que azar. Taí. Era uma umidade que ela gostava. Mas só porque era quente. O Rio de Janeiro, das duas vezes que visitou, continuava lindo. E ela amava coisas lindas, mesmo quando sozinha. Foi sozinha da segunda vez. Conheceu duas holandesas queimadas de sol, gringas, daquelas que definitivamente não sabem usar o fator de proteção solar correto. Ou daquelas tão brancas, tão brancas, que não adiantava usar protetor solar. Mas usavam e ela não entendia porque tão vermelhas. Mas eram lindas. E ela amava coisas lindas. Amava mais ainda falar aquele inglês que às vezes vinha difícil a cabeça, mas que evoluía belamente depois de uma conversa desinteressada. Saía nos restaurantes fazendo pedidos em inglês, para depois lembrar que era brasileira. Uma brasileira que acabava desistindo vez ou outra, mas, ainda assim, uma brasileira.

Foi ao Cristo Redentor, mas não teve paciência de ficar, porque o frio começou a pegar e uma neblina que não se sabe de onde surgiu para cobrir o Cristo que acabou sem cabeça. Ela não gostava de Cristos sem cabeça. Óbvio. Mais um deus perdido, pensou. Um espírito gigante, no meio de um pico verde na beira do país, sem cabeça. Era aterrador. Não queria o Cristo sem cabeça. E não queria sentir frio. Impaciente, perdeu as estribeiras e brigou no Cristo Redentor. Quanto custava pular do muro do monumento? Nada, pois então não tinha graça. Não pulou. Desceu o trem pelas matas, em curvas e beiradas tão íngremes que era fácil achar que era um caminho que não sabia dar ré. Como não tinha medo, foi mesmo assim.

Não antes de ser engolida pelo Cristo. Engolida pelas mãos, porque se não tinha cabeça, tampouco a boca era vista. Não voltou ao Cristo da segunda vez. Mas cumpriu as missões que tinha ido cumprir. Adorava passar nas audições de canto.

E sempre passava. O que sabia mesmo, mesmo, era cantar.
Mesmo quando isso custava tão caro.
Uma vez, custou a vida.

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Ela enlouqueceria se não pudesse esquecer.
Mas antes de dormir ele tirou as presilhas do cabelo dela.
Então lembrou. E dormiu com meio sorriso e meia lágrima.

Para ela, essa era quase a maior prova de amor.
Não precisava de muito, só que do lado dele sabia que teria sempre mais.
Sem precisar pedir.

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Se ela não se atrasasse, não era ela mesma. Uma arte para cada coisa na vida. A de acordar de bom humor sempre sempre era talvez a melhor delas. A outra arte era a de se atrasar. Meia hora para os eventos importantes. Uma hora para os eventos divertidos. Quando tinha dor de barriga, bom, aí o atraso era de duas horas no mínimo. Às vezes avisava, às vezes deixava as pessoas empacadas esperando.

Desta arte ela não se orgulhava, mas era como mancha de nascença. Já vinha de fábrica e não tinha a opção de remover. Talvez anexando um pouco de disciplina a tudo ela viesse a ter uma chance de chegar na hora. Caso contrário, ela estaria perdida para sempre como o coelho de Alice.

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E saiu.

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Passando pelo Setor Militar a neblina da noite sob as luzes dos postes formava uma massa de ar úmido e cinza. O barulho do carro antigo atormentava a alma leve. Era a solidão movida pelo vento, movimentando as nuvens ali, quase no chão. Quase nada se via a frente... apenas poucas faixas da pista. Tudo branco. Fantasmagoricamente branco.

Esse dia ela chegou em casa.
Mas a cada metro que andava, era a morte de uma coragem subentendida.
Quase não chegou.
Mas sim.





terça-feira, 17 de junho de 2014

Eu tenho uma história pra contar

muita gente não vai acreditar por mil motivos e ela começa assim: coloquei uma música feliz para tocar. Do contrário choraria todos os rios em mim. É a primeira vez que escrevo tão claro quanto as luzes de casa. Não tão iluminadas, apenas o vislumbre das coisas importantes penduradas nas paredes, empoeiradas no chão. Espanei uma dor aqui e ali antes empoeirada porque alguém me perguntou das violências do passado. Decidi contar então. Sem meias palavras eu contei. Aqui, o vislumbre de uma história que deveria ser de amor, mas que no meio do caminho se transformou em outra coisa.

Engraçado. A música triste começou por si só, mas vou ser mais forte que a tonalidade menor. Escrever nunca foi tão difícil. Vai soar exagerado e muito, muito mais do que é. Aí é que está. O que passou não tem descrição. É um horror. E mesmo que eu escreva a melancolia dos dias que me passaram e a paixão injusta que me açoitou, o mundo fechará os olhos em esquecimento. Só eu sei. E precisei contar, mesmo que nada diga, explica, sinta. Ou ninguém.

"One day you will understand, you had me in the palm of your hand.
And I will be gone. I leave you to wonder."
Wonder - Anneke van Giersbergen 

Tive que tapar a boca para que ele não me ouvisse chorando no banheiro. As batidas fortes na porta me assustavam e eu me encolhia cada vez mais em cima do vaso sanitário fechado. Não podia dizer uma palavra, ou eu perderia a cabeça. O banheiro vivia cheio de larvas negras. O tempo úmido atraía as moscas de banheiro nojentas. Eu vomitava mentalmente todo dia ao tirá-las uma por uma do box. Não adiantava. Em um dia ou dois lá estavam elas, as larvas das moscas a nadar pela água acumulada da porta de correr. Eu não queria morrer. Nunca tive a intenção de morrer assim. Só não dava mais pra doer. A sensação era de rombo, roubo, falta do corpo. Incredibilidade. Eu não poderia estar passando por aquilo, não daquele jeito, à beira da praia, ao som das ondas batendo, um oceano salgado e verde gelado adulando a areia do meu quintal. Eu tentei de tudo: água sanitária, oxigenada, sabão de côco, secador de cabelo. As larvas negras voltavam enquanto meu amor crescia em meio ao caos. Sozinha, eu parecia me empilhar nas gavetas de roupas amassadas, eu só tentava. Com todas as fibras e com a pele. Eu tentava com o olhar, com as unhas, com o intestino e com o estômago. Eu tentava com os pés, os ligamentos e cada pedacinho de cartilagem. Eu tentei com o coração e com os dedos. Eu tentei com a boca, com o suor e com a meleca do meu nariz. Eu tentei. E ninguém soube o quanto.

- Pára de chorar. - Mais batidas.

E eu tapei a minha boca, lembrando dos passeios de moto pelas manhãs frescas de primavera ensolarada. As montanhas, os vales, o mirante, a clareira, o parapente, o pôr do sol enevoado. As duas únicas avenidas da cidade em perfeito estado. Pessoas brancas e loiras, de olhos claros e sotaque engraçado. O mundo brilhava dentro do capacete vermelho. E eu queria aquele amor pra mim. Aquilo era amor pra mim. Alianças de latão e olhares eternos.

Treinávamos todos os dias. Começava a crescer em mim a disciplina que eu perderia alguns meses depois. Hoje meu quarto é um pandemônio. Parece que as coisas bagunçam-se sozinhas e tudo flutua quando penso em organizar. Eu durmo sozinha ainda. Dividir a cama com alguém é insensato e sem sentido. São os momentos em que saio de mim para ser ninguém. Chegava cedo, treinava firme, comia direito. Me chamaram de gorda, emagreci. Parei de comer, emagreci demais, tomei sol para esconder a palidez do meu corpo que definhava. Até que me disseram que eu não tinha o menor talento para nenhum modalidade circense. Deveria agir ao contrário e provar que eu serviria para alguma coisa. Mas, na verdade, nunca tive que provar nada para ninguém. Parei de treinar. A minha alegria era o malabares. Parei, as claves alaranjadas de ponta branca ficaram, para sempre, naquele passado ensolarado de horror. Era mais um daqueles filmes que começam lindos e acabam inesperadamente em tristezas sem descrição, cobertos de terror e sangue. Bem, o meu não acabava em sangue, mas muita coisa morreu em mim. Ainda. Subia no tecido cada vez mais alto, até chegar no topo um belo dia. Eu cheguei, mas não tinha a graça suficiente para descer. Engraçado, hoje estou certa que posso ser o que eu quiser.

Desde que andei de moto pela primeira vez vestindo roupas quentinhas e um capacete vermelho, começaram a dizer que eu era mais feliz. E me mudei de casa. A casa que escolhi a dedo, com os móveis que eu escolhi a dedo, com as coisas que comprei com o meu dinheiro, a mudança que fiz com o meu carro. E levei o amor para casa. Era amor como nunca havia sido e eu nunca havia sido tão boa, tão pacífica, tão perfeita, tão fiel, tão em paz. E eu me divertia tanto no início. Era a mais feliz das criaturas de inocente aceitação e sonhos. A casa tinha cheirinho de praia, tão perto do oceano, com varanda, churrasqueira e uma árvore. Eu adorava a árvore que entupia a calha do vizinho e escondia bichos inimagináveis. Era quase como uma animação da Pixar, os olhos grandes brilhando na escuridão amigável. A grama era verde. Tinha quintal, flores e um muro baixinho. As janelas grandes ficavam abertas o dia inteiro e ao sair vez ou outra me esquecia de fechá-las. O mundo caía quando eu esquecia de alguma coisa. Meus braços uma vez foram amarrados em cima da cama por esquecer a roupa lavada na máquina de lavar. Uma ligação, meu pai, eu não podia falar e ele dissera ao meu pai que eu estava louca. Precisei pedir a um deus que eu não acredito e gritar ao meu pai que acreditasse em mim. Eu estava amarrada e desesperada, mas ainda não estava louca.

- Pai, por favor, pede pra ele me soltar. Me ajuda.

Não podia levar mais que cinco minutos da fisioterapia para casa ou eu teria traído o amor na imaginação maliciosa dele. A questão é que eu me traía ao deixar meu espaço enclausurado em suas vontades. Meus braços ficaram roxos, meu cabelo crescia descontrolado em cor de sangue, desbotando, desbotando, desbotando....

Não era mais feliz. Não treinava e mal comia. Minha única alegria era abrir a janela branca da casa rosa em ficção do parque, mas aquela nem era eu. Era a mocinha inventada da cabeça de alguma maluco, vestido rodado azul, loira aguada, sonhos infantis. Tão não eu que meu sorriso se abria sem medo. Minha personagem era muito feliz em tiros de faroeste, cowboys em cavalos brancos e bandidos bonzinhos. Índios e trilha sonora. Índios e efeitos sonoros. Índios e cenários interativos. Índios e. Ele era um índio no espetáculo. E era o bandido. E era o coveiro. E beijava outras garotas. E era só mais um cara como outro qualquer. E em público ele era o príncipe que havia me conquistado. Eu era a bandida. Eu era a culpada, mais uma vez, por fazer uma escolha errada. Eu errei e ninguém além de mim poderia pagar pelas minhas escolhas. E paguei tão caro. Ninguém sabe, ninguém imagina e, mesmo hoje, talvez ninguém acredite. Afinal, ele sorria aos montes e declarava seu amor em demonstrações públicas de afeto. Afinal, ele dizia que me amava. E eu sorria em resposta. Não entendia.

Trabalhávamos em um parque de diversões. Todos os elementos para uma vida perfeita. Um dia ele disse que me amava logo depois de me xingar. Eu não xinguei de volta. Ele não conseguia entender que eu não seria a empregada dos seus sonhos e sim uma mulher independente com opiniões e personalidade firme. Inteligência. Eu era inteligente, eu sabia escrever, sabia pensar e relacionar as situações. Eu via o mundo porque fui educada e estudei com afinco. Eu sabia falar inglês, era apaixonada por francês, conseguia fazer coisas que homens faziam (óóóóóóó!). Ele dizia que eu tinha uma explicação para tudo. Tinha uma explicação para o atraso, uma explicação para o sorriso, uma explicação para falar com outras pessoas e ser gentil com desconhecidos. Tinha uma explicação para tudo: eu era educada e tudo tem sua razão de ser. Tinha tempo para ele. Não tinha tempo para mim, não tinha tempo para cuidar de mais ninguém. Eu havia feito a minha escolha. Aquele amor, aquela casa. Aquele fim. E cinco minutos a mais era o roxo no braço dos cinco dias seguintes.

Depois dos xingamentos, vieram os empurrões. Depois de um empurrão ele dizia que me amava. E me jogava no chão. E em todas as coisas que eu havia estudado, não conseguia encontrar uma resposta para aquilo. Eu tentava ser perfeita, mas sou lerda, desastrada e esquecida, mas continuava tentando ser perfeita. Às vezes lavava a louça sem guardar a louça seca e molhava tudo de novo. Uma briga. Às vezes esquecia a roupa na máquina de lavar. Outra briga. Às vezes eu só queria dormir, mas ele não queria que eu dormisse e então eu era a vagabunda que não gemia. Chorava em silêncio antes de dormir. Violada pelo amor, sem amar. Uma vez ele pisou na minha cabeça, um pouco antes de me amarrar. Não lembro as ordens dos fatos e não quero lembrar. Algumas barbaridades eu apaguei da memória, tinha que me proteger de alguma forma. Lembrar poderia ser fatal e eu me cuidei. Muita coisa, esqueci.

Engraçado. Agora tive a impressão de que a porta do meu quarto bateu. Mas nada se mexeu. Meus fantasmas voltam às vezes, mas eu sigo em vitória. Não derramei uma lágrima. Não precisei nem me esforçar. No dia do aniversário dele eu fiz o jantar preferido. Arrumei a mesa, deixei a casa cheirosa, brilhando, fiz tudo com tanta perfeição! Cada bilhete de amor. Bizarro pensar na breguice que o amor engrandece e provoca. Um presente delicioso, como ele gostaria, champagne, guaraná, sobremesa.

Nesse dia eu ganhei um banho de champagne por dizer ao nosso amigo que brigávamos às vezes, não dei detalhes, não quis provocar. Foi uma constatação tímida. Quase um pedido de socorro silencioso, eu não tinha ninguém ali. Não sabia o que fazer. Não podia de forma alguma atrapalhar meus pais ou tirá-los de sua paz cotidiana e não tinha em quem confiar. Ninguém podia saber e eu havia falado mais do que devia. Ele disse que me amava depois de atirar o copo de 300 ml cheio de champagne gelado no meu rosto e no meu vestido. Tinha conseguido tempo até para arrumar o cabelo e passar uma máscara nos cílios agora ralos. Eu não podia ser eu, não podia sorrir, não podia dizer bom dia. Outro dia eu estava deitada na cama e ele rasgou meu short preferido por julgar curto demais. Outro dia ele rasgou outro. No dia em que eu vesti um vestido curto para ficar em casa ele disse que meu rabo poderia ser de quem eu quisesse, porque eu não seria mais dele. Outro dia eu não pude sair do quarto, outro dia comecei a tomar antidepressivos escondida, outro dia minha mãe foi me visitar e notou que eu havia me tornado uma pessoa disciplinada, prestativa, fazedora de comida, arrumadora de casa, preocupada com tudo e todos e descabelada. 

Um dia ele cortou a árvore. Eu amava a árvore. Sem a árvore não havia sombra ou pássaros. Meus bichinhos de olhos grandes da amigável escuridão, companheiros contadores de estrelas também haviam sido dizimados. A grama começou a ficar amarela. As pessoas começaram a jogar lixo na nossa casa. Papeis de bala, papeis de picolé. Um dia jogaram o gato e ele ficou abandonado na chuva miando. Eu amei o gato e ele não deixou o gatinho ficar. Um dia adotamos o cachorro e ele disse que ele morreria de medo de mim quando eu quis que ele não me tocasse mais e precisara gritar. Então ele disse que me amava. E eu já não sabia distinguir verdade de ódio, amor de contação de histórias, animação e realidade. Depois de um tempo e olheiras profundas eu não lembrava mais como era ser ou existir. Não sabia como era andar livre pela calçada de mãos dadas olhando o céu. Abrir as mãos doía e eu não conseguia sentir meus braços. Eu andava por inércia, guiada pelas obrigações e pela dor.

No dia do meu aniversário ele me deu um livro no final da noite porque segundo ele eu mereci assim. Nenhuma palavra durante o dia. Mas quase que não. O gato foi embora. E os antidepressivos na minha gaveta brilhavam na lembrança enquanto ele batia forte na porta do banheiro, gritando para que eu parasse de chorar ou eu pagaria caro por isso. Cultivava uma caixinha de remédios para as minhas crônicas alergias e tudo o mais. Usava raramente. Tinha band-aids e resfenol. Alguma coisinha para o estômago, estomazil, omeprazol. Fluoxetina. Quando ele finalmente alcançou o quarto dele, saí do banheiro. Meu cérebro não doía mais que minha alma, mas o cérebro parecia querer partir o crânio em pedacinhos miúdos. Mal conseguia andar, só queria que parasse de doer.

Um atrás do outro. Os comprimidos azuis tomaram conta do meu esôfago, estômago. Foram todos os comprimidos da minha inofensiva caixinha de primeiros socorros. A última coisa que me recordo era o olhar dele em desespero me sacudindo e me perguntando o que eu tinha feito. Ele dizia que me amava e tudo bem. Eu podia descansar. E tudo ficou escuro, em silêncio e em paz. Eu era amada porque era o que ele dizia. Mas eu estava morrendo. No sentido literal. Eu estava morrendo. Intoxicada pela agressividade do mundo, pelo ódio, desamor e pelas obsessões. Eu estava morrendo por todas as pílulas. Eu estava morrendo por mim.

Ledo engano quando achei ter chegado ao nada. Um paraíso em paz. Acordei em um quarto cinza com pessoas vestidas de verde, me xingando enquanto eu pedia por favor para irem mais devagar. O processo de desintoxicação era meu vômito azul com pedaços da carne da minha garganta. Vomitava sangue e azul ao mesmo tempo. O médico raspava os tubos existentes em mim com agressividade enquanto eu pedia para parar.

- Por favor, tá doendo muito. - Sempre fui humilde. Pedi com humildade e muitas lágrimas para que fossem mais delicados e que me ajudassem. Eu já tinha sofrido demais. Esta é a hora em que desabo mesmo agora. Ainda hoje me assusta a falta de solidariedade, a ignorância, a falta de preparo, a maldade diante de alguém que sofre. A insensibilidade dos médicos e enfermeiras diante de uma pessoa que teoricamente tinha tentado se matar. Engraçado. Eu só queria que parasse de doer. Não achava que todos os remédios do mundo pudessem me levar daquele lugar. Seria mais do que eu poderia merecer. Realmente, só queria que parasse de doer, porque eu já não sabia mais quem era, ou que pertencia a mim mesma. Mal sabia que meu corpo era meu. Quanto mais pensar em cometer um crime contra ele. Naquele estágio era quase como tentar matar alguém que já tinha morrido e que eu não conheci. Ele dizia que me amava, então eu só precisava que parasse de doer. E doeu mais. Não houve ajuda de verdade, eles só precisavam me manter viva porque as regras eram essas. Eu cheguei a escutar que eu poderia morrer se eu quisesse. Mas longe do hospital ou das pessoas que realmente mereciam algum cuidado. Ninguém me perguntou o que aconteceu, ninguém imaginou porque os meus braços estava roxos ou porque os meus pensamentos cheiravam a espumante. Ninguém perguntou ao cara que me deixou sozinha no leito do hospital (que esperou eu acordar para dizer que me amava) o que tinha acontecido. Ele tinha dito: ela tentou se matar. E a verdade se instalara, porque a palavra de um príncipe não pode ser constatada. Ninguém quis saber. E eu não perdi meu tempo explicando. Não queriam me dar alta, mas disseram que eu não tinha direito ao leito. Me colocaram sentada numa cadeira gelada de boteco. Ninguém sabia o porque de eu estar chorando tanto. E eu me escandalizei. Me senti desamada, perdida. E não conseguia parar de chorar.

- Tá arrependida, agora? - Diziam com ironia ao me olharem feio pelos corredores. Eles não faziam a menor ideia. Eu não era o monstro. Ele também não, afinal, ele dizia que me amava, certo?

Então eu quis morrer de verdade. Mas não fiz nada a respeito. Não podia mais negar a vontade que tinha de evaporar, desaparecer. Não podia mais segurar em mim os gritos reprimidos. Não podia mais deixar que o mundo me levasse em violência, sem escolha, sem fazer nada a respeito. E gritei para o médico. Ou você me dá alta, agora, para que eu possa descansar no conforto da minha casa ou eu chamo a polícia e te processo. E rapidinho o papel apareceu nas minhas mãos. 

Precisava voltar para casa. Cheguei em casa, não lembro como também. Foi uma semana irreal. Ninguém sabia o que tinha acontecido. Meu pai soube a versão do príncipe, não a versão do demônio. E até hoje minha família tem dificuldade de acreditar que eu fui perfeita e que eu não era o monstro. Até hoje as pessoas se mostram surpresas por ver que uma mulher tão feliz e satisfeita com a própria existência pode ter chegado tão perto de uma morte sem explicação. Eu morreria sem que ninguém soubesse o que realmente aconteceu.

Eu fui maltratada, humilhada e iludida por um simples frase: "eu te amo", seguida ou antecedida por violência psicológica e física. Não foi um empurrão ou uma amarração qualquer. Não foi só um pisão na cara. Foi muito mais que isso e muito mais difícil de imaginar. Algumas pessoas souberam tudo e ainda assim não entenderam. Outras nem me dei ao trabalho de contar. Gosto de dizer que dou o valor exato que as coisas têm, ou pelo menos chego muito próximo disso. O que aconteceu passou e não faz mais parte do meu futuro ou do meu presente. Mas é parte de quem eu fui, portanto ainda uma parte de mim. Como tudo em mim, é importante.

É claro que eu errei também, mas não assim. Despertei o monstro. Esfreguei a lâmpada do gênio errado. Mas nenhum dos meus erros justificam tudo o que eu passei. Uma evolução: derramei uma lágrima ao escrever esse texto. Só uma. Porque ainda dói, mas hoje eu sou gigante em amor e vontade. Não tenho a menor modéstia ao dizer que sou forte. Eu sou mesmo, tão forte quanto se pode ser. E serei mais, diante de tudo, adversidades, horrores. Tudo. Cada dia mais forte, cada dia melhor. Os demônios não podem dominar espíritos bons em pureza não necessariamente comprovada, como já disse, não preciso provar nada pra ninguém. Eu sou o bem mesmo que um tanto egoísta. Eu cuido de mim agora e tenho cuidado ao me doar. Um dia eu me entreguei de corpo e alma, acreditei de coração aberto, entreguei minha vida e meus segredos. Como tantas mulheres como eu que se sujeitaram e acreditaram em um amor inventado. Hoje o mundo tem que fazer por merecer, por mim, por elas. A minha vida é preciosa para mim e para os meus e mesmo que eu seja um grão de poeira no espaço, um pontinho dele me pertence e me cabe. E isso deve significar alguma coisa.

Minha avó era violentada. Meu avô era cantor, boêmio e violento. Minha avó é uma guerreira.
Minha mãe se separou ao primeiro sinal de que poderia sofrer alguma coisa similar. Ela não deixou acontecer. Minha mãe é uma guerreira.
Eu sofri também, minha irmã foi empurrada, xingaram a outra porque ela se fez firme em seus princípios. 

O que morreu em mim? O medo de morrer. O medo de ficar sozinha. A utopia de que toda panela tem sua tampa e a historia de metades de laranja. Bem, eu não sou uma laranja. Não é como se eu tivesse me tornado incapaz de amar. Eu posso amar, ainda, tanto quanto. A questão é se alguém tem coragem de me amar com tudo o que tem. Porque eu não aceito menos que isso. Morreu em mim a ideia de que intimidade só traz desrespeito e filhos. Morreu em mim grande parte da hipocrisia relacionada a mulheres e seus corpos e os tabus sexuais desequilibrados e sem lógica. Morreu em mim a tolerância ao machismo e a ideia da fraqueza feminina. E eu me divirto como eu quiser, mesmo que isso custe infundadas críticas sem fim. A verdade, é que eu não ligo para o que as pessoas pensam, mas deixo bem claro que, do meu jeitinho, devagar e pelas beiradas, vou lutar pelo que eu acho certo e direito.

Tenho outras histórias como esta para contar. Mas hoje só queria dizer que eu significo muito. Uma poeira no espaço que importa, sim, por mim e pelos meus.

Eu significo.
Nós, mulheres, significamos.

E não dá mais pra calar.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quando o tempo passa.

Ela quase não fala mais. O som quando desabrocha pelos lábios finos é rouco e falho. Ela quase não anda também. Perninhas frágeis, flexionadas, seguram um corpo magro em curva a andar pelo corredor da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto e novamente para a sala. Os cabelos branquinhos penteados severamente não cobrem os olhos sempre em calmaria. O rosto não se abala com sorrisos ou promessas. O rosto não se move por tão pouco, por bom dias ou despedidas. Parece estar esvaziando.

Ela se esquece que está comendo no momento em que começa a fazê-lo. Ela se esquece do meu nome, mesmo me vendo todos os dias e me confunde com parentes distantes ou gerações passadas. Já fui Marta e Márcia. Raro falar "essa é a Amanda". Voltar no tempo.

Ela fazia os melhores biscoitos de queijo fritos do interior de minas quiçá do mundo. Do meu mundo, o melhor de todos. O frango caipira, vi inúmeras vezes os bichinhos morrerem subitamente no quintal, degolados pela minha doce vó sem dó, era caprichado, temperado e, quando tinha netos em férias, maneirava na pimenta. Incrível como sentir dó dos bichinhos realmente fazia parecer com que eles se fossem mais devagar. Talvez fosse a relatividade do tempo, fazendo durar mais que o necessário as más sensações. Doer eterniza.

Deixei de dormir para pensar nela. Às vezes tenho a impressão de que passo dias pensando nela. Ela é um bloquinho de pessoa imóvel sentada na poltrona macia da sala. Mesmos horários, mesmo cantinho. Ela não escolhe o lugar de sentar ou a hora de acordar. Ela não toma decisões e não paga contas. Ela não faz grandes reflexões em voz alta, mas parece que sinto a cabeça dela borbulhar. Ela não segura o xixi e quando levanta solta sonoros puns de abalar. 

Se é serenidade ou vulcão, eu não sei, mas o interior pensante da minha avó me intriga mais que tentar adivinhar se meu cachorro está com dor. Ele chora de saudade. Minha avó não chora. Não sei se ela sente saudade ou se espera tudo terminar em paz. Acho que ela cansou. Engraçado, ainda não tenho oitenta e já cansei também. Não tenho sete filhos e o futuro é difícil imaginar. Não tenho segredos.

Fico pensando se ela se lembra de quando era menina. Do que ela brincava? Quem ela namorou antes de casar e depois de enviuvar, de que cor ela gostava mais. Quais foram suas dores de menina ou adolescente? Qual teria sido o nome do primeiro animal de estimação? Teria sido uma aranha no canto da parede ou o gato do vizinho? Fico pensando se perguntar machuca. Ouvi dizer que devemos arcar com o barulho de quem estava em silêncio.

Talvez eu deva perguntar. Desligar a tevê. Acompanhar o banho de sol. Levar para passear. Segurar as mãos trêmulas. Tentar. Alguma coisa. Qualquer coisa.

 Ela ainda vive e respira. Um sorriso por dia ou por semana, difícil contar, esparsos e raros deveriam ser mais frequentes e firmes. É quase como não saber se deve sorrir. É quase como não saber se deve falar ou se mexer. Quando ela se move pela casa o alarde é grande. Ela deve evitar comer nos horários errados, mas ela só queria uma banana, sentadinha na primeira cadeira que encontrara na cozinha. Uma boneca de edição limitada de alta tecnologia biológica e mecânica deve ser melhor aproveitada. Talvez eu deva ler algum poema. Talvez eu deva respirar o mesmo ar, talvez eu deva colocá-la para ouvir uma música diferente. Talvez ela pense que sou uma idiota. Talvez ela não entenda. Talvez ela não lembre, mas eu posso fazer alguma coisa.

Amanhã começo com um poema. Paulo Leminski ou Augusto dos Anjos. Drummond?
Mário Quintana ou Clarice. Não importa. Deve acontecer.

Preciso fazer valer a pena, porque doer arrasta o tempo.
E deixar alguém eternizado no canto da sala a pingar é tão cruel quanto enraizar um pensamento e endurecer.

Quem sabe eu encontre o caminho de amar.

quarta-feira, 26 de março de 2014

A Manhã de Mexericas Azedas Voltou Sem Amor

Sacudi meu cabelo e sem querer senti o cheiro bom. Uma frase basta para sintetizar? Gostava de subir as escadas de tijolos vermelhos verificando se meu cabelo estava cheiroso e se eu estava branquelinda o suficiente. Os degraus eram poucos até o primeiro andar e eu só podia me arrumar durante o primeiro lance de escadas porque o segundo já era de frente para a porta aberta vestida de caveiras em um fundo colorido. Era gostoso pensar nos detalhes: rímel a prova de suor, mas nem sempre adianta. E eu ria das minhas pequenices bobagentas de pulso rápido. Algumas coisas ficam gostosas na memória. Gosto de contar como Queen, another failed romance, pena.Talvez eu quisesse ser de alguma forma importante. Eu nem sei. Parece que fico lembrando em looping sem conseguir entender, exatamente, o que senti ou o que tenho agora.

Tentei outros caminhos. Outra pessoa. Pessoa nenhuma. Então me achei sentindo nada jogando Candy Crush matando aula (eu, matando aula, a piada do dia, da semana, do ano, por que eu fiz isso comigo mesma?) acabada na cama com os olhos coçando de alergia. Samba canção, regata, cabelos desgrenhados. Como se ainda esperasse. Não consegui ficar com outra pessoa. Não por mais de dois dias. Tinha medo do toque do celular. Enchia a garrafa de água compulsivamente e prendia o xixi até explodir correndo no banheiro. Anteontem ganhei uma caixa de chocolates suíços, crime previsto nas leis da minha vida e acabei com ela. Hoje fiz um manifesto contra mim mesma a favor do meu corpo e da minha sanidade. Condenei-me a parar de uma vez por todas.

Não morri de amores. Talvez seja mais um sentimento de fracasso. Não consegui o que queria e, poxa, queria tão pouco. Quase nada. Sempre pouco exigente. Talvez agora eu sonhe o mundo e consiga pouco mais que grudar na parede gelada às espaçadas quartas-feiras. Resolvi escrever um livro sobre meus amores, mas mal sei distinguir amores de paixões de aventuras de casinhos de quedas de desisti logo no início. A ideia de fazer letras para as músicas que tem implodido no meu cérebro se tornou uma ideia melhor.

Sabe do que eu gosto? De coisas simples. E gosto de não querer. Gosto de acontecer. As coisas andam tão difíceis de acontecer ultimamente. Tudo tem que ser programado, antecedido, avisado. Insuportável. Logo a minha vida que costumava ser tão interessante, súbita. Não pensava duas vezes antes de enlouquecer. Agora me guardo no pote de margarina, fechadinha na geladeira, esquecida.

Meus processos escritos são sempre delimitadores de momentos, rituais de passagens, tomadas de decisões, abandonos. Aqui sempre acabo enterrando alguma coisa, algum sentimento, alguma saudade. Hoje enterro minha espera, minha hipocrisia e minha preguiça. Quando a luz de alguém se acende nas minhas noites costumo não deixar queimar porque não gosto de substituições. Tenho apego àquela lâmpada. Não acredito em substituições. Hoje quero aprender a andar no escuro e apagar tudo. Que permaneça minha audição, que me arraste o tempo.

E se uso meu passado para dramatizar? De forma alguma dramatizo. Não estou sofrendo. Só... falando. Costumo não falar, não sei conversar. Não sei dizer. Só faço disso tudo uma forma de produção. Me serve de reflexão, de lembrança, um presente para mim mesma do futuro.

Foi bom. E passou. Que pena. Ainda bem.
No bem bipolar de estar, decreto passado o presente escrito e deixo no ar a minha vontade de mudar que já mudou.

Eu pulo daqui. E passo pra lá.
De luzes apagadas, meus sonhos são maiores agora.
E tem trilha sonora...

sábado, 8 de março de 2014

Around.

Limpei a baba quando levantei a cabeça antes encostada na mesa de vidro. Dormira em cima do enroladinho de queijo e presunto temperado enquanto dois amigos escutavam Damrau operar a Rainha da Noite no Youtube. O resto da casa dormia em silêncio, sem se incomodar com as notas agudíssimas das obras. Ficar acordada tem sido difícil, os dias se arrastam, para variar. Hoje era um dia especialmente melancólico, Bon Iver nos fones de ouvido com a música que não paro de escutar há uma semana. Decidi instantaneamente que o próximo vídeo seria Gethsemane. Deixaria pra me preocupar com os graves depois.

Os dentes estavam grudando. Tinha comido tudo. Pão de queijo, biscoito de queijo, enroladinho de salsicha, bolo verde de alguma coisa coisa fofa com alguma coisa cremosa por cima. Azedinho, bom de arder o maxilar na antecipação salivante de imaginar.

Conseguiria ser mais do que isso?

Dormira sacudindo as pernas de um lado para o outro, boca aberta, imagem típica do cansaço estampado na pele. Então todas as coisas se mostraram ainda mais difíceis e lentas. O famoso processo.

Não fazia a menor ideia do que era ou do que deveria fazer, a não ser andar automaticamente e transitar pelos compromissos e metas. O sono não ia embora. Passara do limite da qualidade de vida para atingir as terras do sem fim de mim mesma. O vazio humano igualado ao caos. Sentia ódio, aquele que antecipava os dias líquidos tingidos de vermelho e dores viscerais. Não era fácil ser mulher com tantas homenagens cor de rosa, degradê e lilás, mas gostaria de receber uma rosa despretensiosa. Rosas tem um significado tão poderoso que essa poderia ser só uma rosa vinda pelo vento, sem mãos aparadoras que cobram resultados para os presentes e dádivas.

A solidão habita, alheia às fisicidades presentes. É mais do que deixar a companhia em outro cômodo. É mais do que prestar atenção no círculo imaginário que rodeia e cerca os limites dos membros esticados de um corpo caçador. Solidão é a dor muscular aliada ao sol de domingo. Solidão são meus hormônios invadindo as membranas do meu olhar, aquele olhar que carrega o mundo devagar em fases periféricas e harmônicas.

A minha solidão é deitar, fechar os olhos e não sonhar. Nunca mais sonhar.

O sábado seria atípico, o cigarro dizimado, minha dignidade perdida entre deixar dormir e terminar de escrever.

No meu mundo tem pavê.

Pior é ter o vazio do caos e ter o cérebro manco ocupado pelo que se passa na burrice de sentir e teimar. 

Cochilei. Tive um sonho breve em que o assédio vestia avental cor de pele com rendas brancas.

Dormi de vez.