segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quando o tempo passa.

Ela quase não fala mais. O som quando desabrocha pelos lábios finos é rouco e falho. Ela quase não anda também. Perninhas frágeis, flexionadas, seguram um corpo magro em curva a andar pelo corredor da sala para a cozinha, da cozinha para o quarto e novamente para a sala. Os cabelos branquinhos penteados severamente não cobrem os olhos sempre em calmaria. O rosto não se abala com sorrisos ou promessas. O rosto não se move por tão pouco, por bom dias ou despedidas. Parece estar esvaziando.

Ela se esquece que está comendo no momento em que começa a fazê-lo. Ela se esquece do meu nome, mesmo me vendo todos os dias e me confunde com parentes distantes ou gerações passadas. Já fui Marta e Márcia. Raro falar "essa é a Amanda". Voltar no tempo.

Ela fazia os melhores biscoitos de queijo fritos do interior de minas quiçá do mundo. Do meu mundo, o melhor de todos. O frango caipira, vi inúmeras vezes os bichinhos morrerem subitamente no quintal, degolados pela minha doce vó sem dó, era caprichado, temperado e, quando tinha netos em férias, maneirava na pimenta. Incrível como sentir dó dos bichinhos realmente fazia parecer com que eles se fossem mais devagar. Talvez fosse a relatividade do tempo, fazendo durar mais que o necessário as más sensações. Doer eterniza.

Deixei de dormir para pensar nela. Às vezes tenho a impressão de que passo dias pensando nela. Ela é um bloquinho de pessoa imóvel sentada na poltrona macia da sala. Mesmos horários, mesmo cantinho. Ela não escolhe o lugar de sentar ou a hora de acordar. Ela não toma decisões e não paga contas. Ela não faz grandes reflexões em voz alta, mas parece que sinto a cabeça dela borbulhar. Ela não segura o xixi e quando levanta solta sonoros puns de abalar. 

Se é serenidade ou vulcão, eu não sei, mas o interior pensante da minha avó me intriga mais que tentar adivinhar se meu cachorro está com dor. Ele chora de saudade. Minha avó não chora. Não sei se ela sente saudade ou se espera tudo terminar em paz. Acho que ela cansou. Engraçado, ainda não tenho oitenta e já cansei também. Não tenho sete filhos e o futuro é difícil imaginar. Não tenho segredos.

Fico pensando se ela se lembra de quando era menina. Do que ela brincava? Quem ela namorou antes de casar e depois de enviuvar, de que cor ela gostava mais. Quais foram suas dores de menina ou adolescente? Qual teria sido o nome do primeiro animal de estimação? Teria sido uma aranha no canto da parede ou o gato do vizinho? Fico pensando se perguntar machuca. Ouvi dizer que devemos arcar com o barulho de quem estava em silêncio.

Talvez eu deva perguntar. Desligar a tevê. Acompanhar o banho de sol. Levar para passear. Segurar as mãos trêmulas. Tentar. Alguma coisa. Qualquer coisa.

 Ela ainda vive e respira. Um sorriso por dia ou por semana, difícil contar, esparsos e raros deveriam ser mais frequentes e firmes. É quase como não saber se deve sorrir. É quase como não saber se deve falar ou se mexer. Quando ela se move pela casa o alarde é grande. Ela deve evitar comer nos horários errados, mas ela só queria uma banana, sentadinha na primeira cadeira que encontrara na cozinha. Uma boneca de edição limitada de alta tecnologia biológica e mecânica deve ser melhor aproveitada. Talvez eu deva ler algum poema. Talvez eu deva respirar o mesmo ar, talvez eu deva colocá-la para ouvir uma música diferente. Talvez ela pense que sou uma idiota. Talvez ela não entenda. Talvez ela não lembre, mas eu posso fazer alguma coisa.

Amanhã começo com um poema. Paulo Leminski ou Augusto dos Anjos. Drummond?
Mário Quintana ou Clarice. Não importa. Deve acontecer.

Preciso fazer valer a pena, porque doer arrasta o tempo.
E deixar alguém eternizado no canto da sala a pingar é tão cruel quanto enraizar um pensamento e endurecer.

Quem sabe eu encontre o caminho de amar.