quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Bem.

Eu estava bem. De verdade. Às vezes me lembro de um certo vazio que aperta de um lado, esmaga do outro e torna a doer, mas estava legal. Às vezes parece que faço tudo errado e que o mundo vai na direção contrária a minha, mas o que eu sinto é tão pequeno diante das atrocidades que alguns vivem todos os dias. Não tenho o direito de dizer que não estou bem, não, sem drama, sem crise. Vou aí, vivendo um passo de cada vez, na manha, com mais gírias que há seis meses atrás, porque falar difícil cansa também.

Mas aí chegou o carteiro e eu nunca vejo o carteiro. Quando ia saindo de casa consegui ver o carteiro do outro lado do vidro agachado, deixando a correspondência por baixo da porta e eu nunca vejo a correspondência. Nunca encosto na correspondência, mas ela estava deslizando pelos azulejos cinzas da cozinha industrial da minha casa, ou o que costumava ser uma, na minha frente e não pude deixá-la escorrer para sempre. Peguei a correspondência, algumas contas a pagar, mal olhei, nunca vem nada para mim. Voltei à copa e deixei tudo em cima do balcão de mármore escuro para livrar a mão e pegar a garrafa d'água de um litro e meio totalmente congelada pelo meu esquecimento e fugir de casa em direção à aula de dança mais exaustiva da história da minha vida, sem drama, sem crise.

Peguei as minhas coisas, também em cima do balcão. Bolsa, cadernos, sapatilha, partituras, chave do carro e saí. Esqueci a garrafa, voltei. Peguei a garrafa, saí de novo e, desta vez, não precisei voltar. No primeiro semáforo uma força incomum agita minha mão e me faz abrir o caderno, sem motivo nenhum. Não me lembrava de ter deixado as cartas ali. Enfiei a mão na primeira coisa que vi, para ter a certeza de que era a correspondência que havia acabado de deixar no balcão e que se encontrava agora dentro do meu caderno vermelho. Era um cartão postal de uma cidade do sul, um lago de cisnes brancos gelados em um inverno passado, não tão distante assim. O destinatário era eu. O remetente eu não queria, não podia acreditar.

Meu queixo enrugou-se e o semáforo ainda fechado me deixou absorver o estado de pura perplexidade. Foi incrível, não caiu uma lágrima desta vez, tamanho vazio, tamanha segurança.

"Quando conheci o Lago Negro lembrei de você. Vendo o lago no verão com as hortênsias colorindo a paisagem e os cisnes caminhando entre as pessoas. Espero que um dia consiga ver no inverno como na fotografia."

Li rápido, semáforo fechado, queixo puxado, boca seca, tensionada, achei que ia chorar, a palavra inverno pulsava como inferno em mim. E quando achei que ia chorar, meu olho ardeu e ficou vermelho e não consegui piscar. Então os dois olhos encheram-se d'água, piscaram e nada aconteceu. Eu não chorei dessa vez. E nem precisei segurar. Finalmente livre da culpa, do remorso, da mágoa, do desastre de quase morrer. Um passado tão negro que deixou uma marca que achava impossível curar. E o alívio de não chorar, de não sentir, de não afundar, de não quase morrer de novo. O sol era tão intenso dentro do carro que parecia vir de mim, fora das sombras, em pleno céu aberto, sinal aberto, coração livre. Meu coração tinha se livrado de tanto peso, de tanta coisa. Foi a prova. Eu SEI deixar as coisas passarem, eu sei deixar as pessoas irem embora, eu sei entender que amor pode durar, mas que pode acabar também. Eu sei entender que as pessoas machucam por motivos tantos e eu sei entender quando mereço mais. Eu sei, eu aprendi, eu finalmente entendi. Pausadamente agora: eu finalmente entendi.

E se me perguntarem o porque de estar sempre bem é porque eu sei o peso de quase ir. Não quer dizer que eu não sinta o peso de maus tratos, eu só não deixo que ele dure mais do que o necessário. Não vou me martirizar e somatizar. Aquele ir para sempre sem volta, onde tudo é verdadeiramente escuro eu sei como é. E se hoje deixo o sol queimar é porque sei que o frio não vale a pena. E se amo como se não houvesse amanhã é porque sei que o que vale é viver hoje. Me desculpem os descompensados, os sofridos, os depressivos, eu passei por muito, talvez mais, talvez igual. Injustiça, dor, perda, fome, frio, separação, pobreza, violência, mortes, escolhas e renúncias, traumas, dificuldades de vários níveis foram os meus degraus. E por isso não deixo qualquer coisa me abalar. E se eu não paro pra reclamar, é porque eu entendi o quanto de cada coisa é necessário. E se não me permito sofrer por nem mais um minuto é porque eu tenho mais o que fazer. 

2 comentários:

Unknown disse...

Uauuu Amanda, que texto mais lindo! Super valeu!!!

Unknown disse...

Uauuu Amanda, que texto mais lindo! Super valeu!!!