domingo, 5 de junho de 2011

A mim.

Vem cá. Senta aqui, encosta a cabeça no travesseiro e deixa o céu mudar de cor até que se apague o dia. Relembra as estrelas, a chuva de estrelas, de um sonho bom e fecha os olhos. Não dorme ainda. Sente o frio, aos poucos dando lugar ao conforto de duas cobertas, deixa os dez graus do lado de fora, se aquece e vem. Pensa em mim, meus cabelos os seus, meus dedos os seus, meus pés gelados os seus e deixa que o mundo inteiro estranho lá no exterior continue do outro lado da janela. Só eu e você, uma alma em um corpo tentando sobreviver.

Uma mente apressada recolhe os resquícios de qualquer coisa e tudo e tenta descansar. Fala com o corpo, que transmite as mensagens de uma alma em pedacinhos. E tudo se comunica e tudo sou eu, apenas. Mais ninguém.

Vem cá, digo a mim, vou cuidar de você. Puxo meus cabelos os seus para trás, passo as mãos pelos meus seus ombros, cuido de esquentar nossos pés, os dois. Me aconchego no conforto de mim e tento tragar o ar mais puro do meu canto no quarto e penso que é de mim que vou cuidar agora. Passei tanto tempo no meu próprio esquecimento que quando tudo se foi, só restou a mim.

Aos poucos o sono chega e um sonho bom outra vez aparece. Desta vez com asas. É um vôo leve, pelos fios de alta tensão, prédios altos, buzinas, mas tudo se esquece no vento da noite enquanto ergo minhas mãos ao alto em direção à cor no topo do mundo. É uma cor escura e redentora.

Vou cuidar dos meus pés, seus dedos, nossas unhas e o sangue que gela no fim do continente. Vem, deixa eu cuidar das canelas, joelhos, pêlos, coxas, barriga. Vou colocar roupas adequadas, prometo. Vou hidratar, exercitar seus meus músculos, deixar as articulações sem dor, parar de torcer meus dedos das mãos, roer suas cutículas, prometo. Prometo resfrescar no calor e aquecer no inverno, prometo respirar pelas narinas, tomar a vacina toda semana, estudar todo dia. Prometo te deixar dormir quando preciso, mas a gente pode dormir menos, muito menos. Prometo cuidar do íntimo e te fazer rir sempre. Prometo deixar o choro cair quando for preciso, mas prometo te deixar mais forte também. Na doce brutalidade... prometo te fazer entender que pode ser desagradável e dar a resposta que quiser e não dar seu telefone e não dar trela a estranhos e se vigiar o tempo inteiro. Vou te vigiar o tempo inteiro.

Eu oro também, mas esse não é um benefício seu. É um benefício aos que a gente ama. E isso farei todas as noites, antes de adormecer. Vou espantar os sonhos ruins e acordar de madrugada para cobrir nosso corpo se ele estiver com frio.

Eu sei que você canta, mas eu escrevo. Sei que podemos fazer os dois, temos todo o tempo do mundo, mas não temos tempo a perder. Não podemos, eu e você, deixar de fazer o que amamos. Prometo deixar as besteiras de lado, viver do fundamental com bônus de alegria. Prometo me alimentar bem, tomar um pouco de sol aos fins de semana, deixar o pouco de melanina que temos transparecer em um bronzeado sutil.

Prometo voltar a tocar piano. Eu toco, você canta... tenho certeza que um dueto de uma só seria lindo... Prometo praticar a disciplina, ser melhor todo dia e fazer você entender que o banho pode demorar menos tempo mesmo nesse tempo de dar coriza. A gente pode tomar menos remédio e mais água. Vem cá, estamos desperdiçando a luz do dia nesse apartamento, vamos para o lado de fora!

Prometo, acima de tudo, te fazer feliz.
Mas você tem que vir comigo e não pode, jamais, me largar, largar da minha mão.
Essa é a minha sua nossa condição.

Um comentário:

Magda Castro disse...

Diálogo maravilhosos com vc mesma. Vc tocou o portal da genialidade com seu monólogo. Original, autêntico, íntimo, profundo. Vc pode sim, tesouro, cantar e escrever. Aliás, tirar de suas palavras, o fio pr suas cançoes porque cançao já é o que vc escreve:tudo tem melodia, ritmo e significado. Falo sempre pr vc ser o que é. Seja então, assim, simples e total.
O que se apreende do seu trabalho me lembrou o livro do Estes Pínkola, a autora de Mulheres que correm com os lobos de que já lhe falei. E, garota, pr chegar a um ponto desse de sensibilidade e atitude vc deu um salto pr a maturidade digno de qualquer grande personagem de nossa História. É isso, menina, seu atestado de maturidade, de sua promessa de se sustentar mesmo que a[enas, absolutamente por si mesma apenas e mais ninguém é algo que poucos humanos conseguem alcançar.
Orgulhe-se!! Vc está podendo tudo! Orgulho só!!!
Magda Castro