terça-feira, 17 de setembro de 2013

Setembro chove.

O momento mais feliz é quando a primeira gota cai no parabrisa do carro, na janela do quarto ou na flor mais alta da varanda, depois de olhar pelo vazio da rua pelando de um deserto de prédios e casas poeirentas. Era o rosto parando de crepitar e os pés alcançando as poças de lama. A água que caía era o fim de uma temporada de visitas frequentes ao hospital, era a felicidade prateada iluminada pelos faróis dos carros passando.

O primeiro trovão me arrebatou e abriu o maior sorriso da semana. Não precisava de ninguém ali. Eram os carros passando, iluminando as pistas de vento e luzes apagadas dos postes. Eram as árvores se rendendo ao frescor da primeira chuva da primavera. A espera pela chuva tinha acabado. E dos carros do lado de fora dava pra enxergar todas as pessoas sorrindo também, passando sem cuidado pelo asfalto escorregadio. A primeiro chuva, uma bênção e uma maldição, para os que acreditam em mitos mais do que eu.

Pra mim era apenas o fim do meu calor. A chuva pareceu molhar meus olhos por trás das retinas, alcançando um cérebro trespassado de provas vitais e responsabilidade descabida. Os últimos dias tinham sido ruins e quentes e eu não reclamo porque amo ter o calor e poder escolher o melhor modo de me refrescar, mas tinham sido ruins por outros fatores e o calor fazia suar minhas ideias.

Quando o primeiro pingo de chuva caiu no parabrisa do carro, na janela do quarto ou na flor mais alta da varanda, pude ver o mundo se abrir pra mim em resposta às minhas preces para Odin, Oxum, Jesus Cristo e Zeus. Todas as divindades compartilham as minhas ideias e passeiam pelas minhas dúvidas e até o primeiro pingo, tinham fechado todos os caminhos. Pareciam eles também não querer deixar o calor vazar. Quando o primeiro pingo de chuva caiu em mim, as respostas vieram e eu sabia para onde ir e o que abraçar.

Um caminho, uma oportunidade, um amor. Os caminhos se abrem à primeira gota que era pura doação de uma natureza cansada de secar. Secava tudo, sem descrição detalhada. Secava tudo. Até pingar onde eu não podia esperar. Hoje meu coração choveu com o céu.

Saí do carro depois de percorrer um caminho apressada de chuva na cara, amando estar entre a ventania e os trovões. Corri sem trancar a porta. Antes de chegar onde não chovia, parei. Olhei para trás, tranquei as portas e sem tirar o sorriso do rosto, corri para a portaria de costume, pulando a primeira poça de lama. Depois de me sacudir a roupa azul, olhei para a frente e vi o que tinha que abraçar, enfim. Larguei as coisas no chão, correndo e pulei em cima do abraço mais branquelo vestido também de azul, com o cheiro inconfundível de chuva invadindo minhas narinas, enfeitado de pequenas folhinhas caídas da árvore.

A primeira gota, a primeira chuva, a primeira resposta.
Descobri, finalmente, que na minha rua chove em setembro.
E sei que é lindo demais molhar.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Sobre nãoamor e suas achanças


É que me apavora dizer "eu te amo". Isso não foi de sempre. Enchia a boca pra falar eu te amo, gritando pela bicicleta no parque em público, subindo nas paradas de ônibus ou no silêncio de um quarto morno a meia luz.

Mas hoje eu te amo baixinho. Tão quieto que falta morrer. É só hoje, eu te amo que talvez amanhã e que passe pelas olheiras do tempo e de mim. Desculpa, se eu não conseguir amar depois, daqui a um minuto a uma semana. Os sonhos são tão mutáveis e a vida é tão estranha. Não faço por mal.

Acordo todos os dias com um sorriso e vou sorrir para o resto dos meus dias, mas ainda é tão pequeno, desculpa, sofrer é tão maior. E só me resta o hoje e agora eu te amo que não cabe, mas ainda baixinho. Não tenho força pra gritar. Te amo raro, te amo que me foge fácil no esquecer na leitura e no trabalho.

Às vezes tenho a nítida sensação de que vivo pra esquecer. Não sei de onde vem mais nada. Tudo dentro virou uma bola de confusa massa sentimental abstrata, perdida sem definição e sem os preconceitos da humanidade. Eu te amo só até daqui a pouco. Depois, eu não sei mais.

Eu definho vivendo intensamente os momentos efêmeros como meus sopros. Cada nota emitida é uma nota que morre, mas que fica nas memórias e nos sonhos e no coração, ainda tenho um. Duvida, eu sei, ainda tenho um coração. Mas acho que ele morreu também.

Como largar uma vida de coisas lindas. Me perguntei isso tantas vezes que chegou a doer em lugares que não sabia existir. E dói como ter que abrir os olhos para as frias manhãs. Voar alto também é morrer.

Cada passo me guia pra morte, meu amor, entenda. Sou uma casca, cheia de amores brutos, rasgados, mortos. E a sua vida, vale muito mais do que um cadáver que anda e sorri. Ela mal começou e a minha já acabou tantas vezes que perdi as contas. Às vezes acho que minha vida se foi de vez com os oitenta comprimidos daquele dia de suor e lágrimas. Cada cápsula uma parte de mim. Cada pílula, o inferno em forma de sarar. Foi uma história triste e passou, mas eu não passei. Eu fiquei e morri sete vezes na mesa de hospital. Morrer é como ficar para sempre no escuro, sem ninguém para estender a mão. Ressuscitar é acordar sozinho para seguir sozinho até o fim.

Não tenho medo de ser feliz. Só acho que não preciso ser feliz. Acho que não nasci pra ser feliz. Tudo passou a ser tão valoroso e ao mesmo tempo tão insignificante que só consigo passar pelas horas olhando o sol, sentindo o vento no rosto. Aproveitando os passos e morrendo. Eu só sei morrer. 

Me perdoa? Não posso voltar, e não quero que você volte. Eu preciso que você viva. Eu PRECISO que você viva e siga e não morra comigo. Eu preciso que você me deixe no passado, onde eu fiquei, presa nas minhas alças de mala e na cama dura, amarrada às rodas de um carro sem direção, enterrada na areia dos meus piores pesadelos. Meus dias não tem mais cor e não vejo como as cores possam voltar.

Não há nada que você possa fazer. Me deixe ficar no seu passado, num feliz passado. Me ajuda a te deixar ir, para um futuro mais lindo, mais claro, mais vivo. Eu sou terra e terror, um fim oco, cinzento. 

Agora só me resta fazer o melhor. Deixar uma vida organizada e sem pendências pra quando a minha hora chegar e ela não demora. Gasto muita vida pra sorrir a todo tempo. E dói tanto que aqueles sopros se vão tão rápido. Morro todo dia, ainda. Ainda e pra sempre.

Não me segue, por favor. Minhas trilhas não levam a lugar nenhum e meu sorriso não ilumina mais os caminhos. Eu sou o lado errado da bifurcação, uma estrada sem volta, sem apego, sem choro, sem vela. 

Os opostos são a mesma coisa. Não me atraio a nada. Não tenho polo negativo ou positivo.
E não tenho mais medo, porque sei que essa rua não tem saída. Não tô perdida, não sou renegada e não sou triste. Só não sou. E não ser, talvez seja a pior das humanidades.

Te peço pra deixar. Eu e meus abismos, minhas correntes, minhas cegueiras e dramas e maçaricos.
Eu e eu e eu e eu. Pra te proteger. Só posso te proteger de mim. E isso é tudo. Vai?

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

domingo, 26 de maio de 2013

Sobre céu e sangue.

Parafraseando Beatles, while my heart gently bleeds, subo o Eixo Monumental com o céu frio, gelado de chuva de granizo passada. Um outono, quase inverno, mas nem tanto.

Não é fácil ser o que é preciso ser para quem devemos ser, mas não é impossível. Às vezes o rombo no coração sangra sozinho, mas por causas muito mais nobres que sarar ou não se ferir. É preciso saber acima de tudo que vale a pena se segurar, por quem vale a pena ter, no sentido de estar do lado, e não possuir.

E tem valido a pena. Por passar por tanto mal, meu deus é a bondade que existe em mim. Meus deuses de benevolência, gozo e saudade. A vontade de tornar o dia de alguém melhor ou subir a escada pensando que o quarto precisa de uma varrida e varrer, logo em seguida, sem esperar que alguém o fizesse. É delicioso fazer o prato de alguém e receber um beijinho em troca. Porque trocas são, sim, necessárias. E trocar é o segredo da felicidade. A troca certa, no momento certo, com a pessoa certa. É redentor.

E sobre humanidade, talvez devêssemos ser mais humanos sim. E mais animais. E entenderíamos a verdade de um amor eterno, a importância de um sorriso, a grandeza de ver o sol se pôr sangrar e a dureza de abrir mão do que preciso for. É preciso sofrer, e porque o sofrimento é tão certo é que é preciso parar de inventar dor e começar a inventar outras coisas. Como um pulo no muro certo para o quintal certo. Como um andar ritmado, em busca de um sonho com música, letra e vontade.

Às vezes arde. E todo mundo sabe disso. Deve arder, tem que arder. E passar. Pega a laranja, parte em quatro e aproveita o suco doce, azedo, quem sabe amargo. Aproveita o bagaço, a morte do néctar protegido. E se for escuridão do outro lado. Deixa que seja. Às vezes a própria luz em demasia pode cegar.

Subi sangrando, com o pôr do sol frio se tornando cada vez mais forte, contrastante e belo à medida em que morria devagar. E morrer, sabendo que o renascimento logo vem, pode não ser tão ruim assim.

Subi tentando descer e chegar.

Ainda tem um colo quente e um abraço apertado pra me receber.
Ainda tem uma linda noite para ser.
Ainda dá tempo.
Ainda dá tempo...

terça-feira, 23 de abril de 2013

Manhã de mexericas azedas


De costas pra ele ela revelava uma tatuagem desbotada na escápula esquerda. Alguma coisa sobre música, ninguém nunca sabia. Era confundida com carrinho de supermercado, carinha triste e vírgula. Às vezes, quando a blusa escondia a maior parte da tatuagem, via-se uma bolinha que podia ser facilmente confundida com uma pinta gigante. Por falar em pintas, ela tinha 178. Se é que não aumentaram de dois anos pra cá. Tinha contado uma a uma com alguma ajuda. 178 era um número bem atraente. Gostava das pintinhas do ombro, as que mais gostam de se multiplicar pela ação do sol. Acho que ainda sonhava.

Não gostava de esquecer as coisas, mas esquecia-as indiscriminadamente. Preferia se revoltar e continuar com as unhas escuras desgastadas a esquecer coisas lindas. Por sorte, as feias também fugiam a memória. Tudo fugia dela. Sem querer, quase querendo. Ele a abraçou e era aquilo que não queria esquecer. E de alguma forma aquela sensação duraria para sempre, mesmo que a falta de memória precoce viesse ocupar os espaços já preenchidos por lembranças tão... fortes. E simples. E inesquecíveis esquecidas, sempre.

Mesmo inesquecíveis, quase todas as lembranças iam embora. Não tinham ordem certa para ir. Só iam. Iam as intensas, as lentas, as lânguidas e as magrelas. A ordem cronológica mal importava. O café da manhã de ontem foi embora junto com as águas que caíram de alguma nuvem nessa cidade que chove, chove, chove. Depois para, para, para. Até não poder mais secar.

De tanto pedir disciplina, ela veio irrefutável depois de um sofrimento aí. Fazer tudo certo desta vez, ela pensava, colocando sempre a vírgula no lugar errado. E não sofrer. Aproveitar a sensibilidade do pedaço de um poema, o método claro de um artigo lido pela metade, a arte de quebrar tudo por todos os lados. E os parágrafos perdidos em palavras, palavras, palavras.

De repente, por causa da dor, aprendeu a estudar, trabalhar, chegar na hora, sorrir, desestressar, organizar o tempo, dar um beijo na mãe, ligar para o pai, curtir a irmã ali embaixo, tomar sorvete ou açaí na hora errada. Por causa da dor, ela voltou pra casa e percebeu a que parte do mundo pertencer sem duvidar. Era um campo de força estar no quarto apertado cheio de sapatos jogados pelo chão. E numa tarde gostosa de vento gelado e sol de rachar, três toques suaves na porta e a pergunta que nunca calaria:

- Quer um copo d'água?

Obrigada.
Ela ainda sonhava, só que de verdade com direito a beliscão. Tudo era cheio e quente, mesmo o ventinho batendo na janela quebrada em tempos tão dispersos, tempo canino, desvairado, animal. Tinha chocolate em cima da mesa. Suíço. Pode? Fotos memoráveis, a felicidade de outros que a deixava tão mas tão mas tão feliz quanto a felicidade dela mesma poder voar. Ainda sonhava de olhos abertos vivendo, sentindo os cheiros e lembrando. 

As memórias ficariam desta vez? Aos poucos ainda se perdem, sem eira ou beira, na imensidão do conhecimento que tende a expandir cada vez mais todos os dias. Propositalmente, sem querer esquecer.

Não estava onde queria, mas onde deveria estar. E isso era absolutamente redentor.
Antes ela dizia não às ofertas de copos de água inacabáveis. Hoje bebe a água mais doce e refrescante de um jardim de tijolos, pimenta e pisos bicolores rachadinhos do tempo e do bom uso. Pés de barro, xixi de cachorro, água com sabão em pó, joelhos em escorrega, e algumas outras borradas histórias com marcas de pneu de carro e sorrisos ao abrir a porta e dar de cara com um lar.

Pleno. Plena.