sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Sensibilidade

Sei que é à flor da pele quando atravesso a calçada e vejo meu interior intangível indo embora com o barulho do carro velho. Não sabia se mandava flores, se gritava versos, se soprava um olhar sem expressão, daqueles demorados de doer a espinha. Sei que ia embora junto com o motor que sempre demora a dar partida e que morre nos lugares mais inapropriados.

Passei pela cozinha em silêncio depois de ter trancado a porta, enquanto via através do vidro embaçado o carro escuro sair devagar, roncando lento até desaparecer. Não me demorei, não fiquei a ver o carro ir embora de propósito. Só queria trancar a porta antes de me enterrar de vez na zona de perigo, tão bagunçado o quarto. Fui colocando as coisas no lugar enquanto a fome vinha, enquanto as agulhas abandonadas num canto da escrivaninha me olhavam atenciosas. Era hora de tricotar.

Sei que é forte e intensa quando a boca estoura em bolhas de água. Estressando e esticando meus músculos, marcando a testa, roendo a unha dos dedos, soltando deliberadamente ácido gástrico quando meu cérebro não recebeu nenhuma mensagem da minha boca. Nenhuma mastigação, apenas a boca aberta de cansaço. Catei as agulhas, antes enfiadas na gola de lã a formar um x, agora finas nas minhas mãos, desejosas de uma agulha um pouco mais firme. A de plástico traz o tipo de lembrança que não quero acender. Mas é só o que me vem. Lembranças e lembranças. Arrepender-me do que fiz é exatamente arrepender-me do que não fiz. Briguei e me arrependi por não ter compreendido. Falhei e me arrependi por não ter me esforçado ainda mais. Perdi e me arrependi por não ter acertado o caminho. Me arrependo apenas do que não fiz, que é o mesmo que me arrepender do que fiz.

Sei que é suave, a sensibilidade, quando não sobra nenhuma imagem. É quando fica o formigamento, é quando o corpo sente a ausência como se estivesse agarrada à matéria firme, viva. No entanto, longe.

Incrível. Vemos nosso mundo ao redor e nos esquecemos de olhar nos olhos.
Esqueci de ver o que estava do meu lado, ou no meu colo, ou me segurando nos braços, pra ver o que tinha ao meu redor. A bolha de intimidade faz exatamente isso: me intimida. Acabo em pensamentos avulsos, esquecendo de olhar os olhos. Às vezes, já nem se lembram da cor dos meus.

E mais um dia. Mais uma madrugada. Mais um nada aqui dentro.
Meu quarto é puro papel e cama. Falta o recheio, a cobertura.
Falta pouco, espero.


Sensibilidade. É quando o sol nasce na gente antes de despontar no horizonte, é quando o inverno cresce, a frieza assoma, o escuro absorve antes de sobrar solidão. É o anterior ao acontecimento, é angústia e ânsia.

Sensibilidade é uma praga imunda porque eu odeio ser sensível.
Mas amo, e brigo e... fazer o que?
Me recolher. Entre amar e brigar, escolho viver.


E seja o que Deus quiser.

Um comentário:

Magda Castro disse...

Uma vez alguém me disse, ou li onde não sei, que o escritor é escritor mesmo quando ele faz rir e chorar. Ouso acrescentar que o escritor é escritor mesmo quando ele surpreende a alma e a razão, além claro de fazer rir e chorar. E seu texto, minha flor encantadora, tem tudo: emoção, susto, surpresa pela criatividade, delícia pela mensagem muito clara em construções tão inéditas... lindas!
Ah, tesouro de minha vida, está aí o seu refúgio; o seu melhor amigo, o seu caminho mais bonito: escrever. O mesmo que vc me disse, lhe digo: "escreva, escreva, escreva." O mesmo que já lhe disse, repito. Coloque tudo no papel, ih, não, coloque tudo no word pq assim vc tem o poder de transformar seus monstros interiores à sua vontade, de domá-los a seu gosto e quem sabe, transformá-los em brinquedos de pelúcia.
Bom demais seu texto!
Com amor infinito.
Mamãe