domingo, 12 de fevereiro de 2012

Madness.

Essa não é uma história feliz, tampouco cheia de esperança. Ela não tem volta, aconteceu de verdade há muito tempo atrás e vem acontecendo ainda até hoje sem que nada possa ser feito. Não existe paliativo. A dor é constante e mesmo que mascarada por momentos abençoados, ela continua e não vai parar nunca.

O sorriso no meu rosto e no rosto da minha família esconde uma saudade de dias melhores. Um dia talvez, quem sabe, um dia espero possa fazer uma pesquisa primorosa sobre isso, mas hoje não tenho estômago, meu coração é fraco e, querendo ou não, tenho que conseguir tomar conta de mim ao menos, mas quero dizer que escondo essa saudade. E sei que não vai passar.

Loucura na minha casa tem o significado literal. Nunca dizemos que somos loucos por nada. Dei uma pausa para tirar foto de um raro momento, os cinco irmãos juntos. Não enlouqueça, não enlouqueça eu insisto, não deixe o mundo engolir o que há de bom, que a autodestruição não seja a solução para os nossos problemas, que o sol brilhe por dentro mesmo que o dia seja de chuva, nublado e medonho.

Ouvir a voz do meu irmão mais velho em suas palavras desconexas me deixa o rosto encharcado. Ouvi-lo perguntar por mim e dizer que estou bonita e ficar vermelho logo depois faz com que eu queira fugir para quando eu ainda tinha dez anos de idade, quando ele ainda tinha seus momentos bons. Hoje ele é assombrado por "eles" que ninguém sabe quem são, quer conquistar o território nacional com contratos no computador e diz que dentro do avião é confortável, mas é ruim porque as muitas pessoas declaram guerra umas as outras em pleno voo.

Um livro que ele nunca viu está desatualizado, no mundo dele que ninguém pode entrar. Um mundo que só ele consegue ver, só ele tem acesso com senhas. Ele mora numa casa enorme, mas diz morar num quartinho sem banheiros, porque "eles" não deixam que seja diferente. Ele fez um plano de trabalho que está presente em todo o território nacional, junto com "eles" e patrocinado por "eles", os caras que comandam a vida do meu irmão e que ninguém nunca viu.

Ainda há pouco ele entrou no meu quarto e disse oi, Amanda, você tá aqui. Eu disse sim, estou, senta aqui. Perguntou quem eu encontrei na internet e disse uma amiga. Ele falou jogar o papo fora e eu disse às vezes é bom. Ele pegou meu violão sem uma corda e perguntou se podia afinar. Eu disse claro, mas está sem uma corda. Ele disse tá sem uma corda? Tudo bem. Tudo bem, eu disse. E ele começou a afrouxar todas as cordas indiscriminadamente, eu pensei, mas ele chegou a uma combinação linda de afinação e começou a tocar como nos tempos em que ele ainda ficava bem. Tocava guitarra, acho que eu já tinha dito... E meus olhos já se enchiam de água mais uma vez enquanto ele dedilhava o violão, tocando um blues com as cordas afrouxadas.

Meu irmão mais velho tem uma loucura dentro dele que ninguém nunca entendeu, mas que eu sempre achei linda. O que me pesa são os momentos em que ele se sente assombrado, em que os alienígenas o impedem de divagar, quando o mundo, cheio de gente louca, solta gritos de guerra, ratos por todos os lados saindo dos esgotos e de cada cantinho das paredes de casa. Meu sobrinho de 13 anos já pode trabalhar na cabeça do meu irmão, e ele quer saber com o que, se tem uma marca associada, e ninguém discute, todo mundo entra na loucura, alguns de má vontade, outros apenas por ser mais fácil assim e logo o assunto acaba, ninguém sabe exatamente como conversar. Ele anda pela casa sonhando acordado, sem coragem de ler os livros, mas achando-os interessantes pelos títulos, querendo saber como a comida é feita para que não esteja envenenada. O extrato de tomate é feito de cogumelos, não tomates e assim ele tem um mundo colorido só dele, mas que às vezes pode ser muito escuro e triste. E é quando eu sinto o que ele sente mesmo de longe, mesmo a quase 2000km de distância.

A saudade que não passa é saudade dele, dos dias em que ele ainda sorria sem olhos arregalados, dos dias em que ele ainda podia dormir e me levar para a escola de música, me ensinar a tocar violão, dirigir seu fusquinha amarelo. Dos dias em que ele ainda podia piscar debaixo daqueles óculos quadrados sem que ninguém o estivesse esperando na esquina. Dos tempos em que "eles" ainda não existiam.

Minha família tem esse mistério irresoluto, uma vontade de que fosse diferente e mãos amarradas. O que podemos fazer é deixá-lo respirando, só ele sabe como se entreter. Uma conversa besta não faz efeito, mas se colocá-lo na frente da televisão ele se permite sorrir com os desenhos animados. Ele não é débil, não é idiota e passando na UnB em primeiro lugar, bom... vamos dizer que também não é burro. Pelo contrário, ele sempre foi o mais inteligente da casa, mas a vontade de ser sociável o destruiu. A vontade de ser diferente sendo que já era em sua forma mais limpa fez com que seu futuro se resumisse a saídas com sanduíches no Mc Donald's e uma repulsa pelo sol. Ele diz que o sol dá trabalho e que o sol é a poeira das ruas, que gruda na pele e faz queimar. Às vezes, em sua loucura, meu irmão é poeta sem querer.

Apesar de tudo, foi ele quem me manteve na linha. A lembrança dele não me deixou desistir, não me deixou enlouquecer. A lembrança dele me manteve longe das drogas e perto da música. Faço da música minha profissão em homenagem a ele que sempre quis um futuro livre mas foi atropelado pela rua, pela realidade mais dura, pelo lado mais sombrio de uma vida que tinha tudo pra dar certo mas que foi acorrentada pelo mal.

Por causa dele sei que existem pessoas más que fazem coisas ruins com a gente. Por causa dele sei que maus exemplos existem e estão próximos demais. Eu faço questão de afastar. Ao contrário dele, quero manter o sol na minha vida e cultivar o bem e queria que ainda fosse possível o retorno, para isso seria útil uma máquina do tempo, para curar as feridas e a loucura irremediável que assola os fracos, que domina meu irmão e todas as partes do corpo dele.

Ele voltou para tocar violão mais uma vez. Parece que eu to tocando com a mão esquerda, falou. Eu disse você está tocando com as duas, mano. E ele sorriu debaixo dos óculos, um meio sorriso, olhos semi cerrados e o prazer de estar de volta às raizes, com a irmã caçula atenta às notas, querendo que aquele momento durasse para sempre.

Um comentário:

Claudia Bittencourt disse...

Ouvi falar que as pessoas mais inteligentes tem propensões a todo tipo de loucura. Um fardo para eles, talvez pela visão diferenciada que tem do mundo...
Mas, mesmo com toda loucura, eles continuam brilhantes.