quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Eu costumava governar o mundo.

O mundo que girava ao meu redor. Pessoas, passos, pastos, postes, portas, porcas, patas e pastéis. Ah, os pastéis. Principalmente os pastéis, dos quais fazia questão de rebaixá-los à classe miserável do meu reino. Colocava as porcas prontas para perfurar paredes, muros, pneumáticos carecas, cercas. Ah, as cercas. Principalmente as cercas alheias, das quais fazia questão de mentir para mim mesma, ao pensar que dominava só por fazer uns furos aqui e outros ali. As patas, as mantinha presas ao chão de madeira corrida. As portas, sempre fechadas, deixavam as dobradiças cada vez mais depressivas, tão inúteis se tornaram.

Os postes iluminados, antes da classe alta, a classe Branca, estavam agora apagados. Mas isso era quando eu costumava governar o mundo. Os pastos eram lindos, amarelos assim. Diferentes, era o que eram. Diferentes, mirrados, inabitados. Nem os porcos das porcas se interessavam.

As pessoas, elite da minha sociedade, cada vez mais abençoadas, brilhantes e altivas faziam parte da minha corte solitária. Eram pessoas sim, fantasmagoricamente lindas, inacreditavelmente perfeitas.

Então a coisa, os esquema, a cadeia era assim: a música profana, também conhecida como Rock'n'Roll, blues e jazz faziam companhia aos pastéis. O metal também ficava bem quando se juntava às barulhentas porcas perfuradoras, que, por mais úteis que fossem, ainda eram meras operárias. Brutalidade não fica bem na corte. Não havia guerras, meu país era sufientemente pequeno e inofensivo para que houvesse nunca tivesse havido importação de ataques. O país era completamente autosuficiente em bombas. Também não eram exportadas. Explodiam ali mesmo, a formar crateras de terra vermelha infértil. O purê de batata era indigente, junto com os grupos que tricotavam durante três estações do ano para se aconchegar ao calor das lãs no inverno. Pobres tricoteiros, vida breve, perderam-se em algum ponto-meia dos fios e das bolas de lã. Os livros, tão misteriosos livros, guardados bem a sete chaves nos baús da minha realeza. A música, cada vez mais sacrosanta, me tornava uma rainha mórbida, não importava quanto fossem os esforços dos bobos da corte. Muitos bobos. Eu os escolhia a dedo, por aparência, inteligência, dinamismo e maldade. Eram tantos, mal cabiam. Pão de mel? Mel amarelo, racismo na veia. Era colocado no último lugar de todo o esquema. Era desdenhado, torturado e destruído. Reduzido a pó. As surpresas, ah, as surpresas, assustadoras e distantes. Sempre ao lado do purê de batata. Não existiam patas. Nem sabia o que eram patas.

Foi quando caí do trono. Foi um tombo lento e dolorido que me deixou cicatrizes e lições. Tantas cicatrizes que quase poderia me amargar pelo resto da longa existência solitária. Caí, reto e certeiro nos braços de um caixeiro viajante, nada desejoso de virar rei. Ele não queria governar, não queria apontar, acusar ou julgar. Não queria encarar, nem retroceder. Queria erguer-se diante de suas provisões necessárias para o resto da viagem. E o segui sem aviso prévio, sem saber aonde iria parar. Não havia cavalos a frente dele, não havia carruagem abaixo. Nada de príncipe encantado. Só haviam seus pés, ávidos, sedentos de novidades, terras novas, lendas e retratos frescos.

Parei de governar meu mundo. Deixei para trás o barulho. Foi quando conheci as patas. Negras e sujas de poeira esvoaçante. Patas grandes e pesadas, que, da inexistência, passaram a ser parte de um coração que começava a bater. A viagem não me levou a lugar nenhum além do meu próprio reino, só me tirou dos olhos a venda que me cegava. O preto branco vermelho com escalas de cinza deram lugar a negritude absoluta do animal que me carregava. Animal enorme, que aprendeu a caminhar ao lado do caixeiro viajante tocador de cítara. Na visão de humana, apaguei o desejo real de colocar ordem as coisas e deixei o caos tomar conta da terra. A minha terra. Tirei os chapéus dos bobos. Estes tornaram-se as pessoas que me acompanharam durante todo o meu reinado e que continuaram comigo na minha viagem ao redor do mundo. Meus amigos, minhas famílias, agora na elite do meu coração. Não havia mais nada a dar, não havia riquezas - tinham sido esparramadas aos produtores das bombas catastróficas. Sobraram os livros e os distribuí às pessoas, que agora, tão normais quanto eu, pararam de ofuscar umas os caminhos das outras. Éramos todos falhos, agora, anárquicos e falhos. Brilhantes, sim, sem comparações, cada um com sua cor.

O purê de batata, também comi. É inútil preservar o que nasceu para desaparecer.
Descobri que purê de batata, além de alimentar magestosamente, também faz muito bem ao paladar. Assim como os pastéis, que comi até explodir. Até quase explodir, porque as bombas já tinham ido havia muito. Os postes, apagados, começaram a iluminar o caminho e, a minha frente, foram se descobrindo campos verdes, dobras macias de terra, cantos fofos de gramínias e rosas mescladas. Perdi minhas porcas. Propositalmente. Soltei-as para produzir porquinhos inofensivos. Sempre soube que porcas foram feitas apoiar, mas não para continuar perfurando. Eram buracos demais a essa altura. Aprovei a música profana e foi a melhor coisa que fiz na vida, sem esquecer da música vinda dos céus - sem dissonâncias, sem imperfeições. Derrubei todas as cercas. Os buracos remanescem na memória distante, mas é ofuscada pelo irradiação dos habitantes de um mundo tão colorido agora, que quem chega de longe tem que estreitar os olhos para se acostumar. De todos os cantos, de cada banco e calçada parecem emanar feixes de qualquer coisa no ar, como um sopro de cores ou um raio de sol. E tudo parece se encaixar tão perfeitamente que até o pão de mel, de acordo com o chocolate, encontraram um lugar para ficar: meu estômago saciado e agradecido. Sei que o pão de mel também estaria se sentindo o máximo.

Minhas terras, agora não eram mais minhas e eu não governaria nada mais. Nem meu próprio nariz. Meu coração era dono de mim e companheiro das pernas andantes. O caixeiro e as patas continuam pesando nas minhas costas. Mas, como se disse, eu carrego um peso leve, delícia de carregar. Vira e mexe, me ajoelho e me curvo, diante d'O Maior. Para agradecer, não para largar ao chão o fardo. Fardo gracioso, encantador. Alivia a pressão e descarrega o corpo da adrenalina excessiva.

Daquelas riquezas, além dos livros, só guardei a cadeira de balanço com as lãs, que pendiam esquecidas dentro do estofado.
A cadeira de balanço, para sentar e compor lembranças sensacionais.

Um comentário:

Magda Castro disse...

Ah! menina! Que confusão organizada vc aprontou com seu mundo. Virou e revirou e gostou do que viu, não foi? Dá quase para tocar as curvas de suas descobertas nesse texto... e do quanto tudo que existe ao seu redor tem significados. Que delícia esse ourê - que aposto a Déda fez - e esse pão de meol - que vc deve ter ganhado do Léo. Só não entendi quem esse personagem que pousou por último perto do Léo. Mas vou pensar a respeito.
É isso aí, tesouro! Sempre disse que uma das coisas que mais gosto quando escrevo é que organizo tudo do meu jeito. Vc acabou de fazer isso!
Te amo em pencas...
Mamãe