sábado, 18 de janeiro de 2014

Talvez.

Talvez se eu parasse de falar de mim. Talvez se eu buscasse rir um pouquinho mais assim. Talvez se o mundo mudasse para melhor ou talvez se a chuva decidisse não cair no sábado. Talvez se existissem cavalos alados e pianos voadores e macacos desbotados. Talvez se eu parasse de pensar tanta besteira ou perder meu tempo com lixo virtual. Talvez se eu decidisse seguir o protocolo, ou o manual. Talvez se o sol queimasse mais forte ou se eu pairasse cada dia mais longe. Talvez se eu fosse um rinoceronte. Talvez se a delicadeza de repente tomasse conta de mim ou se eu decidisse ser a brutalidade de vez. Talvez.

Talvez se eu morasse em outro lugar ou se eu tivesse ficado naquele ano. Talvez eu evitasse tanto dano, talvez parasse de rimar ou repetir ou perturbar. Talvez tivesse chegado antes. Ou muito depois. Ou exatamente na hora certa. Talvez tivesse encontrado, talvez tivesse partido, talvez tivesse esbarrado, talvez lembrado. Talvez se eu tivesse a coragem de mandar a mensagem e interromper a ordem natural das coisas. Talvez se eu tivesse parado de imaginar inutilidades. Talvez eu parasse de escrever, talvez eu fosse boa em outro assunto, talvez eu evoluísse, talvez caísse.

Talvez você me tirasse daqui. Mas talvez eu não quisesse. Talvez não fosse, talvez me calasse. Talvez fosse mais do que fofassidão da minha alma, talvez fosse mais feroz, mais garras. Talvez mansa como um cão de raça, talvez ladra como se precisasse. Talvez boiasse. Talvez chegasse da saída e saísse pela porta da frente, talvez comesse e sujasse os dentes, talvez arrotasse. Talvez sem barulho. Talvez sem cheiro. Talvez sem corpo. Talvez sem desejo. Talvez.

Talvez te largasse, te esquecesse, te partisse, te roubasse, te faísque, te traísse, te fadasse a me conquistar para a eternidade, talvez desistisse, talvez pensasse, talvez lidasse, talvez andasse em frente até correr até sumir e não voltar. Talvez me deitasse, apenas e refletisse. Talvez nada fizesse ou nada retornasse ou nada chorasse. Talvez parasse de esperar. Talvez achasse ruim. Talvez me decepcionasse, talvez viajasse, talvez lesse, talvez dormisse, talvez saísse, talvez ignorasse, talvez morresse. Talvez cantasse. Talvez cansasse. Talvez te amasse, mas não foi bem assim.

Note.

Você não notou? Cheguei sozinha.

Provavelmente não vou embora sozinha, mas foi assim que cheguei. Eu me sentei para almoçar sozinha e da mesma forma fui tomar banho. O livro li sozinha e tentei baixar alguma coisa pra ouvir por minha conta. Fui passear sozinha e, sozinha, dei banho também no cachorro.

Sozinha arrumei um emprego e sozinha decidi sair dele. Me mudei sozinha e a partir deste momento a palavra sozinha começa a soar engraçada na minha imaginação. Sozinha fiz meus planos e sozinha mudei de ideia.

Sozinha decidi que faria disso uma opção e sozinha decidi esperar pela mensagem que não chegaria. E sozinha já sabia que não chegaria. A ideia de que poderia durar eu tive sozinha também e sozinha decidi que não me apegaria a ideia de sofrer por causa disso. Mas que seria divertido, disso não tenho dúvida.

Talvez sozinha tenha perdido a noção de divertido. Inventei sozinha de ser mais séria, mais disciplinada, mais calada. Meu riso alto, geralmente ecoando sozinho pelos bares, salas de aula, de estar, tem diminuído aos poucos e tenho ficado cada vez mais sozinha. Para ir ao banco, ou ao teatro. Ou ao banheiro.

Eu bebo sozinha, como sozinha, ando sozinha e escrevo sozinha. E se alguém me vê no balcão com uma porção de batatas fritas, pode ser que eu esteja sozinha também. Ou não. Mas sim.

Saio desse sábado bipolar sozinha, do mesmo modo em que entrei, de cabeça. A minha cabeça. E se eu sinto autopiedade ou quero que alguém sinta por mim? Meu bem, você não entendeu? Essa sou eu: sem amargura, mágoa, ressentimento. Apenas aceitação de que não era pra ser e um sorriso no rosto, não sou do tipo insistente, oh, não. Eu também me viro sozinha. Dizem até que não tenho coração porque deixo de sofrer. Sofrimento é superestimado. É que pra isso não tem espaço. Aqui não dá. Então continuo o caminho sozinha, trabalhando sozinha, me guiando sozinha, mesmo que isso custe muitas oportunidades. Não me vendo, não me descuido, não me largo. E isso eu aprendi sozinha também. E eu aprendo rápido.

Insubstâncias.

Sombrio como os dias de tempestade e chuva torrencial, ele me perguntou, virando o rosto e abrindo os olhos grandes sempre muito devagar:
- Quem é você?

A conversa estava descontraída, falávamos de vodka e do quanto eu precisava de um drink. Os vidros do carro estavam abertos de frente à praça em que tudo começa. Em que tudo termina. O som da pergunta fez meu sorriso desaparecer e meu cérebro fritar. Eu não sabia responder. De olhar desfocado e testa franzida, eu chorei. Não sabia responder.

Me defino em paixão. De Netflix a chocolate amargo, de um trago a um gole, de abraço em abraço, do sorriso à vastidão do meu quarto revirado. Não perco tempo, essa sou eu. Não perco tempo em remorsos ou mágoas, não perco meu tempo em lamentos. Tenho sentido o tempo correr e a vontade de registrar tudo é tão intensa que o amanhã não vem, mas eu tenho planos. E não perco tempo planejando, penso, mudo, reseto, modifico e reverencio meus sonhos deliciosos nunca prontos, nunca fixos.

Hoje não tenho exatamente que pensar no que sou.
E nem vou.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Bem.

Eu estava bem. De verdade. Às vezes me lembro de um certo vazio que aperta de um lado, esmaga do outro e torna a doer, mas estava legal. Às vezes parece que faço tudo errado e que o mundo vai na direção contrária a minha, mas o que eu sinto é tão pequeno diante das atrocidades que alguns vivem todos os dias. Não tenho o direito de dizer que não estou bem, não, sem drama, sem crise. Vou aí, vivendo um passo de cada vez, na manha, com mais gírias que há seis meses atrás, porque falar difícil cansa também.

Mas aí chegou o carteiro e eu nunca vejo o carteiro. Quando ia saindo de casa consegui ver o carteiro do outro lado do vidro agachado, deixando a correspondência por baixo da porta e eu nunca vejo a correspondência. Nunca encosto na correspondência, mas ela estava deslizando pelos azulejos cinzas da cozinha industrial da minha casa, ou o que costumava ser uma, na minha frente e não pude deixá-la escorrer para sempre. Peguei a correspondência, algumas contas a pagar, mal olhei, nunca vem nada para mim. Voltei à copa e deixei tudo em cima do balcão de mármore escuro para livrar a mão e pegar a garrafa d'água de um litro e meio totalmente congelada pelo meu esquecimento e fugir de casa em direção à aula de dança mais exaustiva da história da minha vida, sem drama, sem crise.

Peguei as minhas coisas, também em cima do balcão. Bolsa, cadernos, sapatilha, partituras, chave do carro e saí. Esqueci a garrafa, voltei. Peguei a garrafa, saí de novo e, desta vez, não precisei voltar. No primeiro semáforo uma força incomum agita minha mão e me faz abrir o caderno, sem motivo nenhum. Não me lembrava de ter deixado as cartas ali. Enfiei a mão na primeira coisa que vi, para ter a certeza de que era a correspondência que havia acabado de deixar no balcão e que se encontrava agora dentro do meu caderno vermelho. Era um cartão postal de uma cidade do sul, um lago de cisnes brancos gelados em um inverno passado, não tão distante assim. O destinatário era eu. O remetente eu não queria, não podia acreditar.

Meu queixo enrugou-se e o semáforo ainda fechado me deixou absorver o estado de pura perplexidade. Foi incrível, não caiu uma lágrima desta vez, tamanho vazio, tamanha segurança.

"Quando conheci o Lago Negro lembrei de você. Vendo o lago no verão com as hortênsias colorindo a paisagem e os cisnes caminhando entre as pessoas. Espero que um dia consiga ver no inverno como na fotografia."

Li rápido, semáforo fechado, queixo puxado, boca seca, tensionada, achei que ia chorar, a palavra inverno pulsava como inferno em mim. E quando achei que ia chorar, meu olho ardeu e ficou vermelho e não consegui piscar. Então os dois olhos encheram-se d'água, piscaram e nada aconteceu. Eu não chorei dessa vez. E nem precisei segurar. Finalmente livre da culpa, do remorso, da mágoa, do desastre de quase morrer. Um passado tão negro que deixou uma marca que achava impossível curar. E o alívio de não chorar, de não sentir, de não afundar, de não quase morrer de novo. O sol era tão intenso dentro do carro que parecia vir de mim, fora das sombras, em pleno céu aberto, sinal aberto, coração livre. Meu coração tinha se livrado de tanto peso, de tanta coisa. Foi a prova. Eu SEI deixar as coisas passarem, eu sei deixar as pessoas irem embora, eu sei entender que amor pode durar, mas que pode acabar também. Eu sei entender que as pessoas machucam por motivos tantos e eu sei entender quando mereço mais. Eu sei, eu aprendi, eu finalmente entendi. Pausadamente agora: eu finalmente entendi.

E se me perguntarem o porque de estar sempre bem é porque eu sei o peso de quase ir. Não quer dizer que eu não sinta o peso de maus tratos, eu só não deixo que ele dure mais do que o necessário. Não vou me martirizar e somatizar. Aquele ir para sempre sem volta, onde tudo é verdadeiramente escuro eu sei como é. E se hoje deixo o sol queimar é porque sei que o frio não vale a pena. E se amo como se não houvesse amanhã é porque sei que o que vale é viver hoje. Me desculpem os descompensados, os sofridos, os depressivos, eu passei por muito, talvez mais, talvez igual. Injustiça, dor, perda, fome, frio, separação, pobreza, violência, mortes, escolhas e renúncias, traumas, dificuldades de vários níveis foram os meus degraus. E por isso não deixo qualquer coisa me abalar. E se eu não paro pra reclamar, é porque eu entendi o quanto de cada coisa é necessário. E se não me permito sofrer por nem mais um minuto é porque eu tenho mais o que fazer.