Ela apagou os faróis. Da cidade, planície, conseguiu ver as constelações brilhando acima do veículo em movimento. Não fazia frio. Não tanto quanto antes, na cidade fantasma, úmida e invernenta o ano inteiro, onde fora morar há alguns meses atrás. Era um frio redentor e apaixonado, este que via através do parabrisas e pela janela do carro, enquanto colocava a cabeça e sentia o vento morrer nos olhos. Olhar as estrelas tinha sido o melhor momento do dia. Até agora.
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Depois de assistir à peça do professor, cuja atuação impecável deixou a plateia de olhos aguados, aliás, que dia aguado e amplo, saiu para pagar o estacionamento no andar debaixo. Esperou a fila e despediu ansiosa dos colegas da faculdade. Queria ir embora logo e ver o namorado. Por um milagre a chuva não a tinha deixado virar o leão como de costume virava na umidade. Odiava a umidade quase mais que a maldade e falta de humanidade dos homens. Gostava do seco, crocante, firme. SOL. Gostava mesmo de se rasgar. Nos prantos, na pele, nos palcos. Estava em busca do firme, ansiosa para ver o amor de cabelos longos e andar lento. O que mais gostava nele era o andar. Calmo, paciente. Era no andado que ele escondia todas as violências, que apareciam no momento tão adequado que faltava fôlego. Gostava quando ele tentava brigar e quando começava a se enfurecer, devagar, de olhar pesado. Ela cortava com carinho. Só sabia ter carinho por ele mesmo nos momentos mais críticos. Aliás, nunca tiveram momentos muito críticos. Eram sempre suaves, mesmo quando doíam. Quando gritava louca, rasgava cortinas e soltava sapatos, o amor era esquecido e amores de verdade nunca são esquecidos. Nem nos momentos de mais raiva. Por isso nunca ficava com raiva. Ela nunca conseguia. Ela nunca quebrava as portas em cima dele. Ela nunca soltaria uma palavra ríspida. Até que ele provasse que era necessário. Mas não seria. Que amor, só, não bastava e que era preciso soltar os cachorros. Ela nunca, nunca, queria soltar os dela. Porque não eram apenas cachorros. Eram a morte num espectro decidido, afinado e sem volta.
Pagou o estacionamento. Entrou no carro limpo, que custou o ombro direito, ligou o rádio mudo e seguiu ouvindo o chiado distante da falta de sinal. Era quase o fim do mundo ali. Nada mais havia além de um lago sujo e uma mata cerrado de árvores tortas. O fim do mundo, na verdade, não era. Era majestoso o cerrado feio, ela achava lindo. Demoníaco, mas lindo.
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Era bom parar na saída do estacionamento do shopping e ver as pessoas dentro dos carros colocarem as mãos para a fora, quando deveriam colocar os cartões já pagos. Era fácil tentar adivinhar se homem ou mulher, idosos ou jovens. Pelos anéis nos dedos, pelo reflexo no retrovisor, pela distância entre o carro e a máquina de engolir cartões pagos de estacionamento. Aquela, que fala e assusta gente como ela. Ela era simples, tão simples. Calos nos pés, uma vida de botinas, cavalos, matagais e rios. Gostava do nome que tinha...
Era bom imaginar o que essas pessoas faziam. Se tinham carros chiques, anéis nos dedos ou blusa de manga comprida. Sempre se perguntava como. E eram vidas necessárias, aquelas em volta. Gente que a obrigava a parar na saída do estacionamento. Mãos brancas ou negras, peles manchadas, com pingos de chuva. A mulher do último carro estava em um enorme. Tinha mãos brancas e um lindo anel dourado com uma pedra na ponta. Parecia sorrir, aquele de satisfação. Era bom. Gostava de imaginar que todas tinham presentes para outras pessoas. Bombons, pedacinhos de torta comidos, um café sem terminar. Aquelas coisas pequenas que todo o dinheiro do mundo não compra. A comida do outro, quando mordida, sempre tem um gosto melhor. Dividir, desse jeito, é mais gostoso. O dia, chuvoso, dava para imaginar. Sair de casa, do frio úmido, tão raro, na cidade planície. Era uma cidade jovem. Como ela, que começava a amadurecer, rápido, mas com uma calma lúcida. Era bom, finalmente, se livrar de monstros do passado, picos de humor e revoltas desnecessárias.
Gostava de ler coisas chatas na cama enquanto o dia passava devagar sob as cobertas. Mal via o sol baixar e sumir. Gostava tanto do sol, tanto quanto gostava das margens dos rios e das matas ciliares. Seu cílios eram fartos, e ela adorava encher de rímel e mostrar ao mundo que estava de olhos bem abertos, atentos, ligados e cheios, cheios, de ternura. Ela via pouco o mal e agradecia aos deuses que não conhecia e aos esquecidos pelo fato de estar viva. Gostava de amar como gostava de sorvete. E gostava de ser amada como gostava de amar. A felicidade está na troca. E trocar, puxa, sempre foi tão bom. Ela dizia.
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- Não, branquela. Tinha que ser com o pé direito! Junto comigo!
- Ai, preto. Desculpa!
Todos os lugares em que iam, tinham que colocar, juntos o pé direito. A primeira vez que pisou na praia de Copacabana, pisou desconcertada fora do ritmo do namorado, um barbudo, príncipe de picareta na mão, como ele gostava de dizer. E com o pé esquerdo, que azar. Taí. Era uma umidade que ela gostava. Mas só porque era quente. O Rio de Janeiro, das duas vezes que visitou, continuava lindo. E ela amava coisas lindas, mesmo quando sozinha. Foi sozinha da segunda vez. Conheceu duas holandesas queimadas de sol, gringas, daquelas que definitivamente não sabem usar o fator de proteção solar correto. Ou daquelas tão brancas, tão brancas, que não adiantava usar protetor solar. Mas usavam e ela não entendia porque tão vermelhas. Mas eram lindas. E ela amava coisas lindas. Amava mais ainda falar aquele inglês que às vezes vinha difícil a cabeça, mas que evoluía belamente depois de uma conversa desinteressada. Saía nos restaurantes fazendo pedidos em inglês, para depois lembrar que era brasileira. Uma brasileira que acabava desistindo vez ou outra, mas, ainda assim, uma brasileira.
Foi ao Cristo Redentor, mas não teve paciência de ficar, porque o frio começou a pegar e uma neblina que não se sabe de onde surgiu para cobrir o Cristo que acabou sem cabeça. Ela não gostava de Cristos sem cabeça. Óbvio. Mais um deus perdido, pensou. Um espírito gigante, no meio de um pico verde na beira do país, sem cabeça. Era aterrador. Não queria o Cristo sem cabeça. E não queria sentir frio. Impaciente, perdeu as estribeiras e brigou no Cristo Redentor. Quanto custava pular do muro do monumento? Nada, pois então não tinha graça. Não pulou. Desceu o trem pelas matas, em curvas e beiradas tão íngremes que era fácil achar que era um caminho que não sabia dar ré. Como não tinha medo, foi mesmo assim.
Não antes de ser engolida pelo Cristo. Engolida pelas mãos, porque se não tinha cabeça, tampouco a boca era vista. Não voltou ao Cristo da segunda vez. Mas cumpriu as missões que tinha ido cumprir. Adorava passar nas audições de canto.
E sempre passava. O que sabia mesmo, mesmo, era cantar.
Mesmo quando isso custava tão caro.
Uma vez, custou a vida.
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Ela enlouqueceria se não pudesse esquecer.
Mas antes de dormir ele tirou as presilhas do cabelo dela.
Então lembrou. E dormiu com meio sorriso e meia lágrima.
Para ela, essa era quase a maior prova de amor.
Não precisava de muito, só que do lado dele sabia que teria sempre mais.
Sem precisar pedir.
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Se ela não se atrasasse, não era ela mesma. Uma arte para cada coisa na vida. A de acordar de bom humor sempre sempre era talvez a melhor delas. A outra arte era a de se atrasar. Meia hora para os eventos importantes. Uma hora para os eventos divertidos. Quando tinha dor de barriga, bom, aí o atraso era de duas horas no mínimo. Às vezes avisava, às vezes deixava as pessoas empacadas esperando.
Desta arte ela não se orgulhava, mas era como mancha de nascença. Já vinha de fábrica e não tinha a opção de remover. Talvez anexando um pouco de disciplina a tudo ela viesse a ter uma chance de chegar na hora. Caso contrário, ela estaria perdida para sempre como o coelho de Alice.
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E saiu.
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Passando pelo Setor Militar a neblina da noite sob as luzes dos postes formava uma massa de ar úmido e cinza. O barulho do carro antigo atormentava a alma leve. Era a solidão movida pelo vento, movimentando as nuvens ali, quase no chão. Quase nada se via a frente... apenas poucas faixas da pista. Tudo branco. Fantasmagoricamente branco.
Esse dia ela chegou em casa.
Mas a cada metro que andava, era a morte de uma coragem subentendida.
Quase não chegou.
Mas sim.
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Depois de assistir à peça do professor, cuja atuação impecável deixou a plateia de olhos aguados, aliás, que dia aguado e amplo, saiu para pagar o estacionamento no andar debaixo. Esperou a fila e despediu ansiosa dos colegas da faculdade. Queria ir embora logo e ver o namorado. Por um milagre a chuva não a tinha deixado virar o leão como de costume virava na umidade. Odiava a umidade quase mais que a maldade e falta de humanidade dos homens. Gostava do seco, crocante, firme. SOL. Gostava mesmo de se rasgar. Nos prantos, na pele, nos palcos. Estava em busca do firme, ansiosa para ver o amor de cabelos longos e andar lento. O que mais gostava nele era o andar. Calmo, paciente. Era no andado que ele escondia todas as violências, que apareciam no momento tão adequado que faltava fôlego. Gostava quando ele tentava brigar e quando começava a se enfurecer, devagar, de olhar pesado. Ela cortava com carinho. Só sabia ter carinho por ele mesmo nos momentos mais críticos. Aliás, nunca tiveram momentos muito críticos. Eram sempre suaves, mesmo quando doíam. Quando gritava louca, rasgava cortinas e soltava sapatos, o amor era esquecido e amores de verdade nunca são esquecidos. Nem nos momentos de mais raiva. Por isso nunca ficava com raiva. Ela nunca conseguia. Ela nunca quebrava as portas em cima dele. Ela nunca soltaria uma palavra ríspida. Até que ele provasse que era necessário. Mas não seria. Que amor, só, não bastava e que era preciso soltar os cachorros. Ela nunca, nunca, queria soltar os dela. Porque não eram apenas cachorros. Eram a morte num espectro decidido, afinado e sem volta.
Pagou o estacionamento. Entrou no carro limpo, que custou o ombro direito, ligou o rádio mudo e seguiu ouvindo o chiado distante da falta de sinal. Era quase o fim do mundo ali. Nada mais havia além de um lago sujo e uma mata cerrado de árvores tortas. O fim do mundo, na verdade, não era. Era majestoso o cerrado feio, ela achava lindo. Demoníaco, mas lindo.
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Era bom parar na saída do estacionamento do shopping e ver as pessoas dentro dos carros colocarem as mãos para a fora, quando deveriam colocar os cartões já pagos. Era fácil tentar adivinhar se homem ou mulher, idosos ou jovens. Pelos anéis nos dedos, pelo reflexo no retrovisor, pela distância entre o carro e a máquina de engolir cartões pagos de estacionamento. Aquela, que fala e assusta gente como ela. Ela era simples, tão simples. Calos nos pés, uma vida de botinas, cavalos, matagais e rios. Gostava do nome que tinha...
Era bom imaginar o que essas pessoas faziam. Se tinham carros chiques, anéis nos dedos ou blusa de manga comprida. Sempre se perguntava como. E eram vidas necessárias, aquelas em volta. Gente que a obrigava a parar na saída do estacionamento. Mãos brancas ou negras, peles manchadas, com pingos de chuva. A mulher do último carro estava em um enorme. Tinha mãos brancas e um lindo anel dourado com uma pedra na ponta. Parecia sorrir, aquele de satisfação. Era bom. Gostava de imaginar que todas tinham presentes para outras pessoas. Bombons, pedacinhos de torta comidos, um café sem terminar. Aquelas coisas pequenas que todo o dinheiro do mundo não compra. A comida do outro, quando mordida, sempre tem um gosto melhor. Dividir, desse jeito, é mais gostoso. O dia, chuvoso, dava para imaginar. Sair de casa, do frio úmido, tão raro, na cidade planície. Era uma cidade jovem. Como ela, que começava a amadurecer, rápido, mas com uma calma lúcida. Era bom, finalmente, se livrar de monstros do passado, picos de humor e revoltas desnecessárias.
Gostava de ler coisas chatas na cama enquanto o dia passava devagar sob as cobertas. Mal via o sol baixar e sumir. Gostava tanto do sol, tanto quanto gostava das margens dos rios e das matas ciliares. Seu cílios eram fartos, e ela adorava encher de rímel e mostrar ao mundo que estava de olhos bem abertos, atentos, ligados e cheios, cheios, de ternura. Ela via pouco o mal e agradecia aos deuses que não conhecia e aos esquecidos pelo fato de estar viva. Gostava de amar como gostava de sorvete. E gostava de ser amada como gostava de amar. A felicidade está na troca. E trocar, puxa, sempre foi tão bom. Ela dizia.
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- Não, branquela. Tinha que ser com o pé direito! Junto comigo!
- Ai, preto. Desculpa!
Todos os lugares em que iam, tinham que colocar, juntos o pé direito. A primeira vez que pisou na praia de Copacabana, pisou desconcertada fora do ritmo do namorado, um barbudo, príncipe de picareta na mão, como ele gostava de dizer. E com o pé esquerdo, que azar. Taí. Era uma umidade que ela gostava. Mas só porque era quente. O Rio de Janeiro, das duas vezes que visitou, continuava lindo. E ela amava coisas lindas, mesmo quando sozinha. Foi sozinha da segunda vez. Conheceu duas holandesas queimadas de sol, gringas, daquelas que definitivamente não sabem usar o fator de proteção solar correto. Ou daquelas tão brancas, tão brancas, que não adiantava usar protetor solar. Mas usavam e ela não entendia porque tão vermelhas. Mas eram lindas. E ela amava coisas lindas. Amava mais ainda falar aquele inglês que às vezes vinha difícil a cabeça, mas que evoluía belamente depois de uma conversa desinteressada. Saía nos restaurantes fazendo pedidos em inglês, para depois lembrar que era brasileira. Uma brasileira que acabava desistindo vez ou outra, mas, ainda assim, uma brasileira.
Foi ao Cristo Redentor, mas não teve paciência de ficar, porque o frio começou a pegar e uma neblina que não se sabe de onde surgiu para cobrir o Cristo que acabou sem cabeça. Ela não gostava de Cristos sem cabeça. Óbvio. Mais um deus perdido, pensou. Um espírito gigante, no meio de um pico verde na beira do país, sem cabeça. Era aterrador. Não queria o Cristo sem cabeça. E não queria sentir frio. Impaciente, perdeu as estribeiras e brigou no Cristo Redentor. Quanto custava pular do muro do monumento? Nada, pois então não tinha graça. Não pulou. Desceu o trem pelas matas, em curvas e beiradas tão íngremes que era fácil achar que era um caminho que não sabia dar ré. Como não tinha medo, foi mesmo assim.
Não antes de ser engolida pelo Cristo. Engolida pelas mãos, porque se não tinha cabeça, tampouco a boca era vista. Não voltou ao Cristo da segunda vez. Mas cumpriu as missões que tinha ido cumprir. Adorava passar nas audições de canto.
E sempre passava. O que sabia mesmo, mesmo, era cantar.
Mesmo quando isso custava tão caro.
Uma vez, custou a vida.
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Ela enlouqueceria se não pudesse esquecer.
Mas antes de dormir ele tirou as presilhas do cabelo dela.
Então lembrou. E dormiu com meio sorriso e meia lágrima.
Para ela, essa era quase a maior prova de amor.
Não precisava de muito, só que do lado dele sabia que teria sempre mais.
Sem precisar pedir.
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Se ela não se atrasasse, não era ela mesma. Uma arte para cada coisa na vida. A de acordar de bom humor sempre sempre era talvez a melhor delas. A outra arte era a de se atrasar. Meia hora para os eventos importantes. Uma hora para os eventos divertidos. Quando tinha dor de barriga, bom, aí o atraso era de duas horas no mínimo. Às vezes avisava, às vezes deixava as pessoas empacadas esperando.
Desta arte ela não se orgulhava, mas era como mancha de nascença. Já vinha de fábrica e não tinha a opção de remover. Talvez anexando um pouco de disciplina a tudo ela viesse a ter uma chance de chegar na hora. Caso contrário, ela estaria perdida para sempre como o coelho de Alice.
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E saiu.
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Passando pelo Setor Militar a neblina da noite sob as luzes dos postes formava uma massa de ar úmido e cinza. O barulho do carro antigo atormentava a alma leve. Era a solidão movida pelo vento, movimentando as nuvens ali, quase no chão. Quase nada se via a frente... apenas poucas faixas da pista. Tudo branco. Fantasmagoricamente branco.
Esse dia ela chegou em casa.
Mas a cada metro que andava, era a morte de uma coragem subentendida.
Quase não chegou.
Mas sim.